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Justiça penal consensual e Justiça Restaurativa:pontos críticos na adoção de abordagensrestaurativas no acordo de não persecução penalna Justiça Federal

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    Ariane Trevisan Fiori
  • 29 de ago.
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Atualizado: 15 de set.

Justiça penal consensual e Justiça Restaurativa:pontos críticos na adoção de abordagensrestaurativas no acordo de não persecução penalna Justiça Federal
Justiça penal consensual e Justiça Restaurativa:pontos críticos na adoção de abordagensrestaurativas no acordo de não persecução penalna Justiça Federal

Geovana Faza da Silveira Fernandes Doutoranda em Direito na Universidade Estácio de Sá Rio de Janeiro, Doutoranda em Ciências Sociais e Direito na Universidade Federal Fluminense, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis, Pós-Graduada em Direito Público pela PUC Minas, Pesquisadora Visitante na Boston College Law (2018), Técnica Judiciária da Subseção Judiciária de Juiz de Fora/MG, Diretora do CEJUSC da Justiça Federal de Juiz de Fora/MG, Professora em curso de Pós-Graduação, Instrutora de Mediação e Conciliação do CNJ e do CJF, Facilitadora de práticas restaurativas, Docente em cursos de formação em Justiça Restaurativa. E-mail: geovanafaza@gmail.com


Ariane Trevisan Fiori Pós-Doutoranda em Direito pela Universidade de Burgos (Espanha), Doutora em Direito pela Universidade Estácio de Sá, com bolsa sanduíche na Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Advogada e Mediadora Penal e Penitenciária da Associação Espanhola de Mediação. E-mail: arianetfiori@yahoo.com.br


Resumo O presente trabalho tem por fim analisar alguns pontos críticos referentes à adoção de abordagens restaurativas no âmbito da Justiça Federal, em casos de oferta de acordo de não persecução penal pelo órgão acusador, bem como refletir sobre a possibilidade de diálogo entre o sistema de justiça penal tradicional e a lógica restaurativa. Primeiramente, são abordados aspectos relacionados à justiça penal consensual e à Justiça Restaurativa, enfatizando algumas tensões. Após, as autoras problematizam a adoção da Justiça Restaurativa na Justiça Federal, defendendo a postura de que é preciso pesquisar mais para se construir uma base teórica e prática coerente para a aplicação de abordagens restaurativas na Justiça Federal. Ainda, refletem sobre o ANPP como porta de entrada para a Justiça Restaurativa, trazendo uma perspectiva crítica quanto a possíveis desvirtuamentos e sobre o perigo de cooptação da lógica restaurativa pela lógica retributiva. São lançados questionamentos sobre a adoção da Justiça Restaurativa no âmbito da competência federal, sem a pretensão de trazer respostas, mas como forma de chamar a atenção para a necessidade de aprofundamento nas pesquisas.


A metodologia utilizada parte de revisão bibliográfica, de pesquisa documental e da própria experiência de campo das autoras, como facilitadoras de práticas restaurativas. Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 186 Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Justiça penal consensual. Acordo de não persecução penal. Justiça Federal. Considerações iniciais

Justiça penal consensual e Justiça Restaurativa:pontos críticos na adoção de abordagensrestaurativas no acordo de não persecução penalna Justiça Federal

A política criminal, permeável aos anseios sociais, positiva tanto instrumentos tendentes a satisfazer um desejo retributivo e criminalizador, tipificando mais condutas, aumentando penas, restringindo garantias, quanto meios que são inspirados por outros ideais, ancorados não em uma noção de punição, mas de necessidade de restauração e de humanização no trato dos envolvidos e de recomposição do tecido social rompido pelas práticas delituosas.


O legislador, pautado no discurso de indispensabilidade de se conferir mais celeridade, funcionalidade e efetividade à justiça criminal, já na década de 1990, inseriu no ordenamento jurídico pátrio instrumentos negociais, como a transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95) e a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95). Nessa esteira, ante o fortalecimento da cultura da consensualidade e a própria crise do Poder Judiciário, em 24.01.2020 entrou em vigor o chamado “Pacote Anticrime”, veiculado pela Lei 13.964/2019.


Nesse pacote, o legislador positivou o “acordo de não persecução penal” (ANPP) (art. 28-A do CPP), figura conhecida por já ter sido adotada por força da Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Cuida-se de inovação no direito brasileiro, que estende a possibilidade de acordo a ser negociado entre o investigado e o Ministério Público para o encerramento do inquérito ou da ação penal, desde que o réu aceite cumprir as condições ajustadas com o órgão acusador e sejam respeitados os requisitos legais, estando entre eles a confissão formal do investigado. Esse instrumento, resumidamente, insere-se no contexto da chamada justiça negociada, ou consensual. Sua origem remonta ao direito norte-americano, à Common Law, às práticas afetas ao sistema Plea Bargaining e aos ideais liberais da autonomia da vontade, em vista de conferir-se maior eficiência, celeridade e economicidade ao sistema criminal.


Por outro lado, também se assiste à adoção de práticas restaurativas, estimuladas pelo Conselho Nacional de Justiça, que delineou a Política Pública Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário por meio da Resolução 225/2016, conforme recomendações e normativas da ONU para fins de implantação da metodologia restaurativa nos Estados-membros (Resoluções 2000/14 e 2002/12). Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 187 Essa convivência de instrumentos pautados em lógicas e paradigmas filosóficos diversos não foge a tensões. Uma delas se expressa no problema fundamental com que pesquisadores e práticos da Justiça Restaurativa na Justiça Federal se deparam: como compatibilizar a justiça consensual, em particular o ANPP, e a Justiça Restaurativa, de modo que a ênfase pragmática e utilitarista da barganha penal não se sobreponha aos movimentos institucionais em prol do fortalecimento da Justiça Restaurativa e da sua efetiva adoção? Em outras palavras, como materializar a Justiça Restaurativa no campo da justiça consensual na Justiça Federal? Colocando lado a lado a via restaurativa e a via da justiça criminal negociada, como é possível compreender a defesa e a adoção desses eixos na seara processual penal, inserindo-os em uma mesma moldura filosófica que fundamente e legitime o exercício do poder punitivo estatal?


O presente ensaio não pretende responder a esses questionamentos, que devem ser investigados em pesquisas mais aprofundadas e com acompanhamento empírico. Este trabalho, em verdade, é parte de uma investigação mais ampla, que tem por objetivo geral analisar, no campo da justiça negocial, a figura do ANPP e a Justiça Restaurativa como escolhas de política criminal para enfrentar a insuficiência do modelo retributivo.


O objetivo geral da reflexão crítica que as autoras se propõem nesta oportunidade se orienta a lançar questionamentos e inquietações a respeito do potencial de práticas restaurativas nos procedimentos criminais federais formalizados, cuja abertura à prática ocorre por meio do ANPP. Inquietações sobre a participação ou não das vítimas, a oitiva dos envolvidos, o emprego de técnicas para viabilizar a assunção de responsabilidades, a reparação dos danos, o empoderamento e a valorização da autodeterminação na construção de acordos realmente consensuais.


1 Justiça penal negocial x Justiça Restaurativa

A Justiça Restaurativa é capaz de se desenvolver como método de prevenção e de resolução horizontalizada e consensual de conflitos, contribuindo para a construção e o fortalecimento de compromissos de mudança para o futuro e para a redução da reincidência e a responsabilização efetiva do ofensor. Parte-se do pressuposto de que o modelo de justiça negocial, na figura do ANPP (art. 28-A do CPP), pode se coadunar e conviver com os ideais restaurativos, sendo capaz de se fortalecer como oportunidade de acesso substancial à justiça, sem a Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 188 imposição de um consenso perverso e de uma harmonia coerciva, consoante construção da antropóloga norte-americana Laura Nader,1 pautada na barganha distributiva e na disparidade de armas. Isso porque esse modelo guarda o potencial de possibilitar a assunção de responsabilidades por parte dos envolvidos e do próprio Estado, desde que os acordos sejam conduzidos de forma a permitir a participação efetiva dos envolvidos no conflito, dentro de um lócus democrático de resgate do diálogo com as partes e redes de pertinência, almejando-se as reparações possíveis e a assunção de compromissos de forma consciente e não pautada apenas na aplicação célere da lei penal, com a consequente flexibilização das garantias processuais.


Habituados a olhar para o processo e para o caráter retributivo da pena, os operadores do direito não visualizam nem consideram as histórias dos ofensores, nem sua imersão nas dinâmicas conflituosas que servem de gatilho para o ato lesivo. Não consideram, com olhar mais amplo, as consequências das penas. Ainda, no sistema criminal moderno, racional e fundamentado no binômio causal, a vítima, em regra, não tem voz.


Em tal sistema, acusatório, mas ainda com resquícios inquisitoriais2 e preso em estruturas verticalizadas de poder, as histórias e os traumas, que muitas vezes são o próprio combustível que retroalimenta a violência e a criminalidade, não são levados em conta. As vias normais do processo penal são estreitas para comportarem toda a complexidade que gravita em torno dos fenômenos delinquentes e das violações aos bens jurídicos que batem às portas do Judiciário.

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1 NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. 1994. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_02.htm. Acesso em: 27 set. 2019.

2 PIETRO JÚNIOR, João Carlos Garcia. O sistema acusatório no processo penal brasileiro e a adoção do modelo inquisitorial system na gestão da prova pelo juiz. Cadernos Âmbito Jurídico: Direito Processual Penal, v. 187, set. 2019. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processualpenal/o-sistema-acusatorio-no-processo-penal-brasileiro-e-a-adocao-do-modelo-inquisitorial-systemna-gestao-da-prova-pelo-juiz/. Acesso em: 7 fev. 2022.


Esse cenário social complexo requer, portanto, o fortalecimento de meios mais adequados às situações reais. Trata-se de uma forma de prestação de justiça que se pode chamar de justiça artesanal, como produto do aprofundamento da ideia do tribunal multiportas. Com o desiderato de atender a essas demandas, diversas sociedades têm adotado a Justiça Restaurativa. E, no Brasil, o movimento próimplementação da Justiça Restaurativa, tanto em âmbito institucional quanto nas comunidades, tem assistido a um robustecimento, mormente após a edição da Resolução 225/2016 do CNJ. Diversos estados têm investido em programas de Justiça Restaurativa em seus tribunais e em Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 189 comunidades, ora como via complementar ao processo penal tradicional, ora como meio adequado para se tratar alguns tipos de crimes ou atos infracionais, na moldura de uma justiça ressocializadora, pacificadora, voltada à solução do conflito entre o autor da ofensa e a vítima.

Entretanto, ao mesmo tempo que se assiste a um implemento das práticas restaurativas em âmbito institucional, o Estado brasileiro tem investido na adoção de modelos de justiça criminal consensual, que têm como características a necessidade de admissão de culpa pelo acusado, a mitigação de garantias constitucionais em prol do estabelecimento de uma pena “negociada” e a reparação dos danos. Esse modelo de justiça consensual é pautado na retributividade, haja vista a imposição de uma sanção, ainda que compactuada, pois o ofensor e o Ministério Público acordam acerca da retribuição estatal pela prática criminosa, pressupondo a confissão do acusado, no caso do ANPP, para fins de obtenção de uma pena mais branda ou imposição de consequências menos nefastas.


A importância do tema, pois, decorre de sua atualidade, haja vista que a lei federal que trouxe o ANPP entrou em vigor em 24 de janeiro de 2020 (art. 28-A do CPP). Não obstante instrumentos de justiça penal negociada já tenham sido inseridos no ordenamento jurídico pela Lei 9.099/95, foi com a previsão da colaboração premiada, pela Lei 12.850/2013 (com redação alterada pela Lei 13.964/2019), que o tema ganhou mais proeminência nas discussões acadêmicas e nos tribunais.


Muitos defensores da Justiça Restaurativa rechaçam os acordos penais, argumentando que eles são um meio de afastamento do direito de defesa, do contraditório e da presunção de inocência, além de terem como finalidade a aplicação antecipada de uma pena, fruto de um acordo a portas fechadas, sem o acompanhamento pelo Judiciário ou por pessoas capacitadas para facilitar os diálogos, sem transparência3 e sem que ocorra a conscientização do investigado acerca do ocorrido, sua autorresponsabilização e a consideração da vítima, que é alijada do processo de barganha. O modelo negocial traria, em si, a lógica da verticalização, da desigualdade de poder, da retribuição pelo mal causado, dando azo à imposição de uma harmonia coerciva, nos dizeres de Laura Nader.4

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3 LEITE, Rosimeire Ventura. Justiça consensual e efetividade do processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2013.

4 NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. 1994. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_02.htm. Acesso em: 27 set. 2019.


Já a Justiça Restaurativa, ao contrário, refletiria a quebra do paradigma punitivo, não se falando em direito de defesa nem em contraditório, uma vez que pressupõe o diálogo ético e respeitoso entre Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 190 os envolvidos, incluindo aí a vítima e, se possível, os atingidos indiretamente pelo crime e a comunidade. Ainda, a abordagem restaurativa questiona, justamente, a lógica retributiva, rompendo com as desigualdades de poder, visando à reparação dos danos, mesmo que simbólica, à inclusão e ao reconhecimento mútuo e à satisfação das expectativas sociais por justiça substancial. A Justiça Restaurativa fundamenta-se em um modelo pacificador, voltado à transformação do conflito e à construção dialógica e colaborativa da solução (reparação dos danos) pelos envolvidos na dinâmica conflituosa, acentuando o protagonismo e a busca conjunta, e verdadeiramente consensuada, por soluções.5 Ante essas discrepâncias, torna-se imperioso analisar, criticamente, a possibilidade de complementaridade entre a Justiça Restaurativa, a justiça negocial e a adoção de práticas restaurativas na condução dos ANPPs, seja no âmbito do próprio Ministério Público, seja no contexto do Judiciário, antes da propositura da denúncia ou até mesmo no decorrer da ação penal, com a realização de prática restaurativa para oitiva do investigado, empreitada que demanda pesquisas empíricas que possam trazer à luz os limites de cada sistema e a possibilidade de diálogo construtivo entre a lógica negocial e a lógica restaurativa.


Aqui, impende ressaltar que o ordenamento positivo n o prescinde da aplica o da pena ou de outras medidas reparat ria , em o er ncia pre cri e constitucionais, a exemplo dos crimes de maior potencial ofensivo, de a o penal p lica incondicionada, sendo que, em grande parte dos casos, o pr prio Estado n o se pode furtar de aplicar a p ni o prevista em lei. Em outras palavras, n o e t nas m o do Estado deixar de aplicar a a retributiva, em ra o de seu dever constitucional de inafastabilidade do controle jurisdicional. Ainda, no Brasil, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, o Ministério Público tem o dever de propor a ação penal incondicional, salvo exceções expressas previstas em lei, sendo a disponibilidade excepcional. Nessas ip te e , por m, nada obsta que pr ca restaurativas ocorram no ambiente institucional e dentro do processo tradicional, de modo a auxiliar no processo de re ta ra o do tecido social rompido pelo conflito e por seus danos.6 Desse modo, mesmo na estreiteza desta exposição, e ainda à míngua de pesquisas empíricas que abordem o ANPP como porta de entrada para práticas restaurativas, defende-se, à primeira vista, a possibilidade de um Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 191 diálogo profícuo entre a abordagem restaurativa e a a retributiva, conciliando-as.


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5 PRANIS, Kay. Processos circulares de construção de paz. São Paulo: Palas Athena, 2010; ZEHR, Howard. Trocando as lentes. 3. ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.

6 FERNANDES, Geovana Faza da Silveira. Justiça Restaurativa, narrativas traumáticas e reconhecimento mútuo. Belo Horizonte: Dialética, 2021.


Os dois sistemas o vistos como fundamentalmente opostos, n o somente porque um seja inter-relacional e o outro focado na p ni o, mas porque os defensores da Justiça Restaurativa acreditam que ela não tem nada a ver com condena o e p ni o, e que a a criminal n o possui elementos restaurativos.7 Todavia, novos olhares devem ser direcionados para a coe i t ncia n o dicot mica entre essas duas abordagens. Em alguns casos, a Justiça Restaurativa uma alternativa per ec o criminal tradicional; em outros, ela pode ser parte do processo, como um procedimento dentro da estrutura formal; em outros, ainda, pode ser uma via paralela, adicional ao procedimento tradicional. o importa a forma, o que importa avaliar a possibilidade efetiva e positiva da coe i t ncia das abordagens e o potencial das inter en e restaurativas para o endere amento dos produtos do conflito.8


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7 CUNNEEN, Chris; HOYLE, Carolyn. Debating Restorative Justice. Oxford: Hart, 2010. p. 41.

8 BRANTS, Chrisje; KARSTEDT, Susanne. Transitional justice and the public sphere: engagement, legitimacy and contestation. Oxford: Hart, 2017.



2 É preciso pesquisar mais, para teorizar e traçar caminhos para a Justiça Restaurativa na Justiça Federal


Pesquisas mais amplas e profundas sobre essa temática se justificam diante de inquietações e da aparente incompatibilidade de movimentos que ocorrem dentro do próprio Poder Judiciário (fortalecimento da justiça negocial, de um lado, e apoio às políticas restaurativas, de outro), de modo a suscitar reflexões a respeito do tema e da necessidade de compatibilização, visando a uma complementaridade e um diálogo entre os modelos. O objetivo aqui, repisa-se, até por uma questão metodológica e de limitação do próprio veículo de divulgação, é lançar luzes e questionamentos para investigações futuras.


Coloca-se a necessidade, pois, de se efetuar uma revisão conceitual e procedimental da justiça negocial, para que ela se torne um instrumento verdadeiramente consensual e participativo de resolução mais célere e eficaz de conflitos penais, mesmo que lastreada na ideia de retributividade, evitando-se a adoção acrítica do ANPP fundamentado apenas na barganha e na imposição verticalizada de um acordo de adesão. Eis as razões para a abordagem da justiça negocial a partir das lentes da filosofia restaurativa, cujas premissas conceituais demandam posturas inovadoras e críticas, no intuito de contribuir positivamente para uma Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 192 cultura de emancipação, conscientização e tratamento adequado dos conflitos. Avançando no questionamento proposto sobre a possível intersecção entre justiça penal negociada e Justiça Restaurativa, questiona-se sobre a possibilidade de adotar-se, com base em normativas locais, metodologias restaurativas dentro do procedimento previsto em lei para a consecução do ANPP, com fins de possibilitar o alcance de um acordo realmente negociado, verdadeiramente consensual, que reflita a verdadeira participação dos envolvidos, a oitiva das histórias, a aplicação de técnicas que permitam a conscientização acerca da responsabilidade, para, então, ajustar-se a recomposição dos danos, ainda que no plano simbólico.


Especificamente no campo dos crimes de competência da Justiça Federal, outros questionamentos são lançados: como balancear o inevitável desequilíbrio de poder e a desigualdade moral nos casos concretos? Como trabalhar a autorresponsabilização em crimes federais sem a participação direta da vítima? Como operar a internalização da censura pela ofensa e a reparação do dano em casos, por exemplo, de crimes financeiros, ambientais, tributários, contra a administração pública? O que pode substituir o encontro vítima-ofensor? Qual metodologia utilizar e que prescinda do diálogo entre vítima e ofensor? E se não houver possibilidade de trazer a comunidade de pertinência ou envolver a própria comunidade ofendida? E se for possível somente o encontro entre ofensor e facilitador? Ainda assim essa prática é restaurativa? Perguntas e mais perguntas...


Para responder a esses questionamentos e a tantos outros que estão surgindo, principalmente em relação à adoção de práticas restaurativas no âmbito da Justiça Federal, são indispensáveis vivências práticas, bem como seu exame crítico, as quais permitam avaliar o potencial da complementaridade entre a justiça consensual e a Justiça Restaurativa, abrandando-se o fator de barganha posicional característica da justiça negociada ao inserirem-se elementos restaurativos em suas práticas, amenizando a verticalidade própria dos acordos penais por meio de uma abordagem mais horizontalizada e dialógica.


Em se tratando da Justiça Federal, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região,9 o Tribunal Regional Federal da 2ª Região,10 o Tribunal Regional


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9 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Resolução PRESI 18/2021, de 27.05.2021. Dispõe sobre a implantação e implementação da Justiça Restaurativa na Primeira Região. Disponível em: https://portal.trf1.jus.br/portaltrf1/comunicacao-social/imprensa/avisos/resolucao-dispoe-sobre-aimplantacao-e-disciplina-da-politica-de-justica-restaurativa-na-justica-federal-da-1-regiao.htm. Acesso em: 7 fev. 2022.


Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 193 Federal da 3ª Região11 e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região12 publicaram normativas prevendo a implementação da política de Justiça Restaurativa em seus âmbitos, de modo a estimular a adoção de práticas restaurativas em processos submetidos à competência da Justiça Federal.


Aqui abre-se um campo riquíssimo para pesquisas. A Justiça Restaurativa é sabidamente uma justiça relacional, do encontro face a face. Muitos defensores, entre eles os puristas, que adotam uma perspectiva de que o procedimento só é verdadeiramente restaurativo se houver encontro face a face entre vítima e ofensor, não vislumbram a adoção da Justiça Restaurativa em ocasiões em que não seja possível haver o diálogo direto entre vítima e ofensor, ao contrário do que advogam muitos pesquisadores contemporâneos, que trilham o caminho da defesa da Justiça Restaurativa mesmo quando não há essa possibilidade.


Nesse ponto, é sabido que, na grande maioria dos crimes de competência da Justiça Federal, a vítima é indeterminada ou indeterminável, ou seja, em muitos tipos penais, o bem jurídico protegido diz respeito à coletividade, à sociedade como um todo, a exemplo dos crimes financeiros, tributários, de falsificação de selos, de moeda, de tráfico ilícito de entorpecentes, ambientais etc. Se fosse adotada uma postura mais purista, seria forçoso reconhecer que, na Justiça Federal, a Justiça Restaurativa teria aplicabilidade em um número ínfimo de crimes: somente naqueles em que a vítima é determinada, individualizada, para que seja possibilitado o encontro face a face.


De outra banda, caso seja adotada a postura mais flexível do que é restaurativo, é possível endereçar uma gama maior de crimes para a abordagem restaurativa, com a utilização de técnicas como vítima substituta, vítima sub-rogada ou até prescindindo da marcação do lugar Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 194 da vítima, desde que seja utilizada metodologia restaurativa condizente com o caso.13 De todo modo, dada a partida da regulamentação no âmbito dos Tribunais Regionais Federais, é preciso, agora, esforço para levar a teoria para a prática e, em contrapartida, alimentar a teoria com as experiências, traçar estratégias, pensar metodologias, capacitar recursos humanos, sensibilizar os atores jurídicos e a sociedade, incluir a comunidade, sendo de capital importância o monitoramento qualitativo dos programas de Justiça Restaurativa nos TRFs, a fim de verificar, principalmente, se as práticas não estão sendo adotadas com o objetivo apenas de se alcançar um acordo em um ANPP, por exemplo. Ou seja, se, a despeito da argumentação de humanizar o atendimento aos envolvidos, elas não estão sendo utilizadas como uma forma de facilitar a renúncia a direitos processuais (ampla defesa, contraditório, presunção da inocência) com o objetivo de colocar um término célere e menos custoso ao processo.


Portanto, a comunidade jurídica e a academia devem ser conclamadas a avaliar os projetos, de modo a contribuir para que a Justiça Restaurativa não seja cooptada pela lógica retributiva.


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10 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Resolução TRF2-RSP-2021/00044, de 02.06.2021. Cria o Núcleo de Justiça Restaurativa da Segunda Região, disciplina a política judiciária de Justiça Restaurativa da Segunda Região – TRF2 e dá outras providências. Disponível em: https://www10.trf2.jus.br/portal/wp-content/uploads/sites/28/2021/06/trf2rsp202100044a.pdf. Acesso em: 6 fev. 2022. 11 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Resolução PRES 455, de 09.09.2021. Estabelece a Política de Justiça Restaurativa e institui o Órgão Central de Macrogestão e Coordenação da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça Federal da 3ª Região. Disponível em: https://www.trf3.jus.br/atosnormativos/atos-normativos-dir/Presidência/Resoluções/2021/Resolução0455.htm. Acesso em: 8 fev. 2022. 12 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Resolução 87/2021, de 20.07.2021. Dispõe sobre a implantação e a disciplina da Política de Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça Federal da 4ª Região. Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/diario/visualiza_documento_adm.php?orgao=1&id_materia=3017294&rel oad=false. Acesso em: 7 fev. 2022.

13 FERNANDES, Geovana Faza da Silveira; PACHECO, Ana Carla Albuquerque. ma sub-rogada: um olhar emp rico sobre a par cipa o da ma nos crimes de compet ncia da a Federal. In: ORTH, Glaucia Mayara Niedermeyer; GRAF, Paloma Machado (org.). Sulear a Justiça Restaurativa parte 2: por uma pr i decolonial. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2021. p. 203-222. Disponível em: https://www.textoecontextoeditora.com.br/assets/uploads/arquivo/366cc-ebook-sulear-a-justicarestaurativa_vol_2.pdf. Acesso em: 2 fev. 2022.


3 Inquietações sobre o acordo de não persecução penal como porta de entrada para a Justiça Restaurativa


O ANPP insere-se na onda contemporânea de adoção de meios consensuais na justiça criminal, conforme salientado anteriormente. Trata-se de uma opção política que parece ser irreversível ante o colapso do sistema punitivo e a conclusão de que a privação da liberdade não reabilita, excluindo em vez de tratar, agravando ainda o problema de superlotação carcerária, sem contar outros tantos malefícios da segregação. Hermes Duarte Morais14 pondera que “e e fenômeno da expansão dos espaços de consenso na justiça criminal é de ordem mundial, não uma exclusividade ra ileira”, e que os instrumentos de consenso não ofendem o contraditório e o devido processo.


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14 MORAIS, Hermes Duarte. Acordo de não persecução penal: um atalho para o triunfo da justiça penal consensual? 2018. D

Contudo, há quem considere que é retórica de legitimação utilitarista o argumento de que é válida a decisão do investigado em não Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 195 se submeter a uma ação penal e cumprir uma pena antecipada. Esse argumento, no fundo, esconderia um discurso que traduz a seletividade e o autoritarismo do direito penal, uma vez que esse modelo de acordo mascara o fato de que ele será imposto a portas fechadas ao acusado ou investigado, ou que acentuará a hipervulnerabilização dos cidadãos mais carentes, vítimas de processos de exclusão social.15


São várias as críticas lançadas contra os instrumentos de justiça penal consensual, dentre elas a falta de transparência, o desequilíbrio de poder entre os atores, a usurpação das funções decisórias pelo Poder Judiciário, a afronta a direitos e garantias fundamentais do devido processo legal.16


Não obstante, há que se reconhecer que o sistema, se bem conduzido, possui benesses, uma vez que guarda em si a possibilidade de construir espaços de consenso, de esclarecimento, de oitiva e assunção de responsabilidade, oferecendo ao investigado a oportunidade de decidir se quer continuar com o processo ou se prefere sua abreviação, com o cumprimento de penas mais leves. Todavia, desde que haja informação clara a respeito da renúncia às garantias processuais, com a assunção de culpa pela confissão. Por esse prisma, devolve-se aos indivíduos a escolha entre continuar a defender-se ou abrir mão desse direito em prol de uma solução mais rápida e menos gravosa.


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15 COSTA, Daniela Carvalho Almeida da; CARVALHO, Victor Fernando Alves. Que consenso é esse? Problematização da justiça criminal “con en al” na perspectiva da Justiça Restaurativa. 2019. p. 137- 155. Disponível em: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/no85g2cd/mi05dpxn/6jp22jRj69ykeoDe.pdf. Acesso em: 19 jan. 2021. p. 139-140. 16 COSTA, Daniela Carvalho Almeida da; CARVALHO, Victor Fernando Alves. Que consenso é esse? Problematização da justiça criminal “con en al” na perspectiva da Justiça Restaurativa. 2019. p. 137- 155. Disponível em: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/no85g2cd/mi05dpxn/6jp22jRj69ykeoDe.pdf. Acesso em: 19 jan. 2021.


Mesmo que esses argumentos sejam rechaçados pelos defensores da não flexibilização das garantias processuais, defende-se que, se bem conduzido, o modelo consensual pode contribuir para uma cultura de confiança dos jurisdicionados na realização da justiça, tornando acessíveis os meios legais de solucionar as pendências que perturbam o convívio na sociedade.17 Seus instrumentos não devem ser utilizados somente com a função de diminuir a carga de trabalho dos órgãos jurisdicionais, mas devem vir acompanhados de mudanças mais profundas e estruturais do ordenamento penal18 e ser praticados com base em uma abordagem que realmente contribua para o resguardo da dignidade dos envolvidos, vítima e ofensor, e sua verdadeira inclusão no processo de tomada de decisão, Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 196 equilibrado e harmônico. Caso contrário, se a prática se sedimentar nos acordos a portas fechadas, aproveitando-se da assimetria do poder, a justiça consensual será nada mais do que uma harmonia coerciva, nos dizeres de Laura Nader,19 uma pseudopacificação que esconde uma escolha feita por medo, vergonha, manipulação ou outro motivo que restrinja a liberdade de escolha ou a escolha consciente e responsável em realizar o acordo.


A adoção de práticas restaurativas dentro do procedimento do ANPP, para evitar vieses verticalizados e utilitaristas da justiça consensual e como forma de revestir os acordos de legitimidade democrática, respeito à dignidade e humanização no trato dos envolvidos, não é tema tratado ainda a contento pela doutrina, havendo uma lacuna de pesquisas empíricas e de cunho notadamente crítico no tocante à possibilidade de se coadunar as duas abordagens.


Desse modo, é necessário abordar teorias sobre a Justiça Restaurativa de forma a possibilitar a reflexão a respeito de sua adoção em complementação à justiça negocial. Chris Cunneen e Carolyn Hoyle20 defendem que a justiça retributiva não exclui a restaurativa e vice-versa, enfatizando a possibilidade de coexistência dos dois modelos, a depender da necessidade de resposta ao tipo de crime e dos envolvidos e em respeito ao due process of law. As autoras argumentam que re ta ra o e retri i o n o o contradit ria , sendo ambas essenciais à busca de a para os infratores, as ma e as comunidades prejudicadas pelo delito, porque “a p ni o retributiva n o ocorre só no sistema de a criminal, mas tam m no processo re ta rati o”, que coloca os infratores para se confrontar com as ofensas que cometeram e suas consequências, a fim de encora -los a reconhecer e a arrepender-se dos erros. Isso, inevitavelmente, envolve um processo de censura retributiva, que pode ser alcan ada pelos cidad o ao se unir em uma con er ncia restaurativa para debater sobre os danos causados: “e e processo pode ser e, muitas vezes, experimentado pelo ofensor e at por seus apoiadores como algo doloro o”.21 É preciso, pois, analisar criticamente a literatura sobre a justiça penal negociada, de modo a afastar conclusões precipitadas.


É necessário, ainda, pensar sobre o tema de tratamento de conflitos; sobre a importância da participação efetiva dos concernidos para a construção de diálogos direcionados ao consenso e sobre o que é consenso; sobre o Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 197 sentido ético da Justiça Restaurativa. Tudo isso com o objetivo de avaliar as posturas que pregam o antagonismo entre ambas – justiça negocial e Justiça Restaurativa –, devendo ser avaliada criticamente, repisa-se, a possibilidade efetiva de compatibilização de ambas e sua complementaridade.


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17 LEITE, Rosimeire Ventura. Justiça consensual e efetividade do processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. 18 Ibidem.

19 NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. 1994. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_02.htm. Acesso em: 27 set. 2019.

20 CUNNEEN, Chris; HOYLE, Carolyn. Debating Restorative Justice. Oxford: Hart, 2010.

21 CUNNEEN, Chris; HOYLE, Carolyn. Debating Restorative Justice. Oxford: Hart, 2010. p. 41-42.


Outrossim, questões estruturais e funcionais do direito a partir da ideia de participação democrática devem ser articuladas. Isso porque, culturalmente, a sociedade ocidental está sedimentada em um modelo adjudicatório como técnica para a solução de seus conflitos. Para Nader,22 os estilos de disputa são componentes das ideologias políticas, sendo resultado de imposição ou difusão, assim como os estilos de solução advêm de um modelo legal de harmonia como técnica de pacificação. Estará a Justiça Restaurativa, no âmbito da Justiça Federal, a serviço dessa ideologia como técnica de pacificação? Ela é ou será norteada pelo viés utilitarista, muito impregnado no CNJ, de medir a eficiência por números?

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22 NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. 1994. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_02.htm. Acesso em: 27 set. 2019.

Esse é um campo prenhe de complexidades, atravessado por aportes de diversos campos do saber, o que faz com que pesquisadores que se utilizam apenas da abordagem dogmática fiquem míopes para as potencialidades da Justiça Restaurativa e para os perigos que circundam sua adoção acrítica. Por conseguinte, a interdisciplinaridade é indispensável para a compreensão de seus limites e seus horizontes e para o desenvolvimento de práticas que sejam moldadas à realidade operante na sociedade brasileira, e, no campo específico da Justiça Federal, essa artesania é ainda mais crítica, uma vez que deverão ser pensados métodos adequados para a observância dos princípios restaurativos mesmo quando não for possível o encontro face a face entre vítima e infrator.


Ainda, acrescente-se que deverão ser pensadas técnicas de manejo mais apropriadas para permitir a escuta profunda, a partir do diálogo construtivo e da comunicação honesta. A comunicação, portanto, é central ao processo de conscientização, assunção de responsabilidade e de compromissos e construção do consenso, tendo importante papel na realização da justiça, com participação dos cidadãos e das comunidades, fortalecimento da mutualidade e efetividade de compromissos futuros, com real inclusão e reconhecimento das fissuras do tecido social acarretadas pelos conflitos ou crimes.


Considerações finais

O objetivo deste paper foi mais lançar dúvidas do que trazer afirmações categóricas ou teorias sobre a adoção da Justiça Restaurativa na Justiça Federal nos casos de ANPP. Foi mais lançar questionamentos que possam ser levados em conta em futuras pesquisas que investiguem se, na empiria, as práticas restaurativas estão a serviço do consenso no ANPP, sendo a Justiça Restaurativa cooptada pela lógica retributiva, ou se elas têm preservado os princípios restaurativos, a lógica que informa todo esse sistema filosófico e de ideias, ancorado em paradigma distinto do punitivismo e da aflitividade.


O processo tradicional busca a censura pela punição, punição como vingança, trazendo consigo uma dimensão de aflitividade que pode levar à degradação da dignidade pela própria estrutura adversarial e hierárquica do processo. A Justiça Restaurativa, ao contrário, busca sim a censura, que não depende da punição, mas uma censura que esteja ligada à assunção da responsabilidade ativa por parte do ofensor, uma percepção de justiça sem degradar, que valoriza a dimensão comunicacional e a autonomização do indivíduo.


A Justiça Restaurativa, na Justiça Federal, mesmo ciente das limitações próprias das peculiaridades e das complexidades dos crimes federais, deve estar atrelada, indissociavelmente, à criação de espaços de comunicação, de encontro, de responsabilização. Um espaço comunicativo que enfatize o processo, independentemente do desejo de resultado. Um processo que zele pela voluntariedade dos envolvidos, por sua autonomia e sua autodeterminação, pelo respeito à dignidade, pela inclusão, pela participação e pela voz, e que possibilite a internalização da censura. Isso porque não há responsabilização interna, consciência sobre o dano causado a outrem, à sociedade, a gerações futuras sem que haja a internalização da censura, o reconhecimento da lesividade, a internalização de valores e da necessidade de se repensar formas de ser e estar em comunidade, condizentes com um paradigma holístico, ecológico, relacional. Essa censura restaurativa, pois, é construída em rede, é internalizada no encontro. Por isso, a Justiça Federal deve pensar em formas de fazer com que a Justiça Restaurativa em seu âmbito seja também comunitária, no sentido de trazer a comunidade para participar dos projetos e dos programas. Assim, a Justiça Restaurativa só estará a serviço de seu potencial transformador se não for vista como mais uma alternativa no cardápio dos métodos de resolução de conflitos.

Por fim, deve-se partir sempre de um exercício crítico de transposição da teoria, que vê como possível a convergência e a Justiça Restaurativa: perspectivas a partir da Justiça Federal 199 complementaridade entre justiça consensual e Justiça Restaurativa, para a arena prática dos acordos de não persecução penal. Essa convergência e possível complementaridade, agora que a prática é possível e estimulada no campo da competência federal, deve ser acompanhada, pesquisada, avaliada criticamente para corrigir eventuais desvios, melhorar práticas, mudar roteiros ou incrementar aquilo que não está na direção e no sentido da lógica restaurativa, realizando seus princípios. A teoria e a prática devem sempre se entrelaçar nesse campo, evitando-se colonizações por ideologias circundantes e lançando luzes para experiências futuras.


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