Sequestro Internacional de Crianças e métodos adequados de solução de conflitos: a justiça restaurativa como alternativa à adjudicação nas ações judiciais fundadas na Convenção de Haia de 1980
- Ariane Trevisan Fiori

- 8 de ago.
- 35 min de leitura
Atualizado: 14 de set.

Giordani Alexandre Colvara Pereira[1]
Geovana Faza da Silveira Fernandes[2]
Ariane Trevisan Fiori[3]
Resumo
O presente artigo analisa se a justiça restaurativa pode ser uma alternativa viável e adequada em casos envolvendo subtração internacional de menores, tendo em vista o melhor interesse da criança, considerando abordagens que trabalham aspectos subjetivos e questões subjacentes aos conflitos familiares. No percurso investigatório, examina dispositivos da Convenção de Haia de 1980 e a sua aplicação dogmática e aspectos do Manual de Boas Práticas de Haia e do Manual de Aplicação da Convenção de Haia do CJF. Ademais, com olhar interdisciplinar, reflete sobre a complexidade sociológica dos conflitos familiares. Tais questões teóricas são entrelaçadas com a experiência prática, abordada por meio de estudo de um caso em que foram aplicadas técnicas restaurativas. A hipótese central é que a dogmática jurídica apresenta limitações para a compreensão das questões subjacentes aos conflitos familiares, sendo a justiça restaurativa uma opção adequada para o tratamento e a composição de muitos casos envolvendo subtração internacional. Trata-se de abordagem qualitativa, de análise crítica de aportes teóricos e de reflexão crítica sobre as normativas tratadas. Como recurso metodológico, recorre-se a estudo de caso envolvendo subtração internacional, conduzido no TRF4, possibilitado em razão da experiência dos autores como facilitadores de práticas restaurativas e vivência do caso examinado.
Palavras-chave: Subtração internacional de crianças. Convenção de Haia de 1980. Dogmática jurídica. Mediação. Justiça Restaurativa.
Abstract
This article analyzes whether restorative justice can be a viable and adequate alternative in cases involving international abduction of children, considering the best interests of the child, considering approaches that work with subjective aspects and issues underlying family conflicts. In the investigative path, it examines provisions of the 1980 Hague Convention and its dogmatic application and aspects of the Hague Good Practices Manual and the CJF Handbook of Application of the Hague Convention. Furthermore, with an interdisciplinary look, it reflects on the sociological complexity of family conflicts. Such theoretical issues are intertwined with practical experience, addressed through a case study in which restorative techniques were applied. The central hypothesis is that legal dogmatics presents limitations for understanding the issues underlying family conflicts, with restorative justice being an adequate option for the treatment and composition of many cases involving international subtraction. It is a qualitative approach, critical analysis of theoretical contributions and critical reflection on the norms dealt with. As a methodological resource, a case study involving international subtraction is used, conducted in TRF4, made possible due to the authors' role as facilitators of restorative practices and the experience of the case examined.
Keywords: International Child Abduction. Hague Convention 1980. Legal Dogma. Mediation. Restorative Justice.
[1] Mestrando em Direito na FURB, Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Constitucionalismo, Cooperação e Internacionalização – CONSTINTER/FURB, Graduado em Ciências Sociais (UFSC) e em Direito (UNOESC), especialista em Direito Penal e facilitador restaurativo do TRF da 4ª Região. E-mail: gacpereira@furb.br. http://lattes.cnpq.br/9025547286475396
[2] Doutoranda em Direito na Estácio de Sá Rio de Janeiro. Doutoranda em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense. Visiting Scholar na Governors State University – Chicago/USA (2022-2024). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Visiting Researcher na Boston College Law (2018). Pós-Graduada em Direito Público pela PUC Minas. Diretora do Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e Cidadania da Justiça Federal de Juiz de Fora. Instrutora de Mediação e Conciliação cadastrada no CNJ. Mediadora com especialização em Subtração Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980). Facilitadora de Práticas Restaurativas. Instrutora de cursos de Justiça Restaurativa. Bolsista da CAPES Programa de Doutorado Sanduíche – PDSE 01/2022. E-mail: geovanafaza@gmail.com.
[3] Advogada, Professora da Graduação e do PPGD/Unesa e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Mediação Penal e Penitenciária pela Associação Espanhola de Mediação. Mestre em Direito pela Unisinos/RS, Doutora em Direito pela Universidade Estacio de Sá com bolsa sanduíche na Universidade Federal do Paraná, Pos-doutoranda pela Universidade de Burgos/Espanha. E-mail: arianetfiori@yahoo.com.br.
1 Introdução
Sequestro Internacional de Crianças e métodos adequados de solução de conflitos:
A sociedade contemporânea tem sofrido transformações causadas pelas revoluções tecnológicas, diluição de fronteiras e construção de um sistema-mundo altamente globalizado. Esse cenário tem acentuado as trocas econômicas, políticas e culturais entre os países, realizadas por sujeitos itinerantes e ligados entre si por redes sociais ou virtuais, ou territorialmente, o que leva à complexação das relações sociais e, por via de consequência, dos conflitos. Esse é um período que muitos teóricos denominam de alta modernidade, modernidade líquida (BAUMAN, 2001), tardia ou pós-modernidade.
A globalização, enquanto fenômeno planetário, mudou o cenário social: as relações sociais sentem o impacto da interconectividade e da fluidez de fronteiras. Hoje, a internet, as mídias sociais, a facilidade de deslocamento, a internacionalização de relações de trabalho, consumeristas etc. facilitam as interações e as conexões para além de uma ordem jurídica e de um território delimitado. O aumento da transnacionalização das relações interpessoais é acompanhado pelo aumento dos conflitos que envolvem as dinâmicas dos relacionamentos humanos.
Assim, passa-se a demandar das ordens jurídicas nacionais uma adaptação a esse cenário globalizado: o tradicional conceito de soberania é reinterpretado, a normatividade das relações e regulação de conflitos envolvendo indivíduos de nações diferentes passam a ser objeto de normas internas e de direito internacional privado. Por via de consequência, o exercício da jurisdição dos estados modernos sofre impacto de duas ordens normativas: uma interna e outra externa, isso porque muitos conflitos pós-modernos possuem caráter transnacional, devendo ser observados tratados e convenções bi ou multilaterais.
Devido a esse cenário, os conflitos familiares não restaram infensos a essa lógica da complexação. E o que isso quer dizer? Os conflitos familiares, habitualmente processados e julgados no âmbito interno dos países pelo Direito de Família, não raro têm se tornado transnacionais, podendo gerar, inclusive, incidentes diplomáticos, como aconteceu como o caso conhecido como “Sean”, que acarretou atritos entre Brasil e Estados Unidos.
No campo jurídico, sobremaneira a partir da década de 1970, assiste-se à defesa da utilização de meios consensuais de resolução de conflitos, sendo uma das justificativas dessa “onda” exatamente a necessidade de se adaptar o remédio (método de resolução) ao sintoma (conflito). Nesse ponto, considerando a transnacionalização de muitos conflitos familiares e o aumento de casos envolvendo subtração internacional de crianças no âmbito de relações de parentalidade, uma defesa que tem sido postulada no campo teórico e transposta para o campo da normatividade é a possibilidade de uso de métodos consensuais de resolução de disputas envolvendo os casos subsumidos à Convenção de Haia de 1980.
Aqui coloca-se o problema: tendo em vista a possibilidade de utilização de métodos consensuais de resolução de disputa nos casos regulados pela Convenção de Haia de 1980, de que modo a justiça restaurativa (JR) pode contribuir para o deslinde desses casos, evitando-se o esgarçamento das relações de parentalidade e considerando o melhor interesse da criança? As metodologias de JR, como mediação vítima-ofensor-comunidade e círculos de construção de paz, seriam viáveis nas ações judiciais envolvendo subtração internacional de crianças?
Esse trabalho se justifica porquanto a dogmática do processo tradicional tem se mostrado ineficaz para endereçar as necessidades e interesses subjacentes que retroalimentam a espiral conflitiva e que, nesses casos envolvendo crianças, acabam contribuindo para o esgarçamento das relações multiplexas e acarretando mais traumas, haja vista que a devolução forçada em razão de uma decisão judicial em regra desconsidera reais interesses e aspectos subjetivos do conflito.
Ademais, justifica-se a presente análise porquanto se verifica lacuna (prática e teórica) em relação à possibilidade de aplicação de metodologias restaurativas no endereçamento e composição desses conflitos judicializados. Há defesas no tocante ao uso da mediação, que já tem sido utilizada por países signatários da Convenção, sendo, inclusive, objeto de Manual de Boas Práticas de Haia e de normativas de países signatários, a exemplo do Brasil, que previu essa possibilidade na Resolução 449/2022 do CNJ. Contudo, tal norma expressamente faz referência à mediação, não se aludindo à hipótese de derivação para a JR.
Parte-se do pressuposto que a “dogmatização” do conflito, por meio da judicialização, não deixa muito espaço para as trocas narrativas e para a escuta verdadeira das partes e interessados, sendo o alijamento dos aspectos subjetivos gatilho para mais sofrimento e trauma. Desse modo, justifica-se analisar se a justiça restaurativa é uma possibilidade metodológica que permite a superação da adversariedade processual, de modo a se construir um espaço de diálogo.
Como hipótese, tem-se que a abordagem restaurativa facilita o intercâmbio narrativo, o endereçamento de questões submersas e que retroalimentam o conflito. Ademais, como metodologia, pode contribuir para que as partes cheguem a um acordo centrado no melhor interesse da criança e na construção de planos futuros que visem a satisfazer a necessidades dos envolvidos – criança, genitores, familiares - evitando-se, assim, novos conflitos e o esgarçamento dos laços parentais.
Como objetivo geral, propõe-se avaliar a insuficiência da dogmática jurídica para responder a contento conflitos familiares que culminaram na subtração internacional de criança e analisar a pertinência da justiça restaurativa para esses casos. Como objetivos especiais, pretende-se, no percurso investigatório, examinar a normativa internacional – Convenção de Haia de 1980-, o Manual para aplicação da Convenção de Haia de 1980, do CJF (2021), o Manual de Boas Práticas da Convenção de Haia (2018) e a Resolução 449/2022 do CNJ, para, daí, justificar a JR como via de acesso adequada à resolução colaborativa do conflito envolvendo a criança. Ainda, objetiva-se, com as reflexões críticas e também aquelas extraídas de análise de um caso prático, auxiliar os operadores jurídicos na tomada de consciência acerca dos limites cognitivos da dogmática jurídica e no endereçamento dos conflitos que têm no seu cerne dramas familiares que envolvem aspectos civis do sequestro internacional de crianças.
No percurso investigatório, será abordada a Convenção de Haia de 1980, seus princípios e normatividade. Também serão examinados alguns aspectos do Manual de Boas Práticas de Haia e da Resolução 449/2022 do CNJ. Após, buscar-se-á compreender algumas questões relacionadas aos conflitos familiares, atentando-se para a importância de se proceder ao tratamento dos conflitos aprofundando-se nas questões subjacentes, e não simplesmente julgando casos por meio da dogmática.
Por fim, entrelaçando questões relacionadas aos aspectos normativos, à teoria subjacente à justiça restaurativa e ao tratamento de conflitos, serão abordados alguns pontos que indicam que, para muitos casos, a JR se apresenta adequada para hipóteses envolvendo subtração internacional de crianças, salientando-se a importância que a avaliação seja realizada à luz de cada caso concreto.
Trata-se de trabalho realizado a partir de abordagem qualitativa, de análise crítica de aportes teóricos e de reflexão crítica sobre as normativas aqui tratadas. Como recurso metodológico, também será utilizado estudo de caso, por meio de abordagem fenomenológica, possibilitada em razão da experiência dos autores como facilitadores de práticas restaurativas e vivência do caso em análise.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO: A CONVENÇÃO DE HAIA DE 1980 E A CRISE DA DOGMÁTICA JURÍDICA
A Convenção de Haia de 25/10/1980 trata dos aspectos civis que envolvem a subtração internacional de crianças, considerada essa como a realocação da criança por um dos genitores (ou, às vezes, outro parente) de uma jurisdição para outra sem o consentimento parental ou judicial ou a retenção indevida em estado diverso de sua residência habitual, violando-se o direito de custódia atribuído pela lei do estado de residência habitual da criança. Trata-se de instrumento de direito internacional privado, ratificado por 103 países (HCCH, 2022) que busca prover recursos céleres para remediar a situação de rapto interparental internacional de crianças, determinando o retorno imediato do menor a seu país de residência habitual, de onde foi retirado ilicitamente, salvo exceções expressas.
Não obstante os avanços que esse instrumento representa no tocante à proteção à criança, o recorte jurídico dado pela Convenção e o foco na celeridade não deixam muito espaço para que questões subjacentes que envolvem a natureza sociológica e psicológica dos conflitos familiares sejam alcançadas. Esses tipos de conflito, nos quais a subtração da criança é uma parte visível e manifesta, são emocionalmente carregados de sentimentos e motivações, que ficam submersas, não encontrando no instrumento processual regulamentado pela Convenção lócus para sua abordagem e endereçamento. O que se busca com a aplicação da Convenção, em última análise, é o retorno imediato da criança à sua residência habitual, onde devem ser resolvidas as demais questões envolvendo guarda e outros direitos e deveres decorrentes da relação de parentalidade.
Nesse contexto, a mera aplicação do tratado internacional por parte de autoridades judiciárias e a retirada forçada dos menores do cônjuge subtraente, com a consequente entrega à autoridades consulares do país de origem, podem gerar traumas profundos na trajetória das crianças, sem, no entanto, atuar nas causas que deram ensejo ao conflito, contribuindo para deflagrar a espiral conflitiva e a proliferação de demandas filhotes ainda mais graves.
Por outro lado, o indeferimento do pedido, ainda que baseado na literalidade do tratado internacional, pode privar a prole do convívio com o left behind parent. Em casos desta natureza, considerando a profundidade das questões subjacentes, um adequado endereçamento do conflito pode contribuir para uma solução mais pacífica e menos traumática para a criança. Nesse sentido, a mediação e a justiça restaurativa ganham importância como formas alternativas de resolução dos conflitos, sobretudo na solução de querelas de natureza familiar, com potencial gerativo traumático, em que há nuances sociológicas e psicológicas não contempladas na lide objetiva.
Nesse contexto, a Política Nacional de Justiça Restaurativa, inaugurada pela Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça, apresenta-se como mais uma possibilidade, no fórum de múltiplas portas, como forma de se pensar o acesso substancial à justiça, que conclama a própria sociedade a participar da composição do litígio, buscando atender, de forma sistêmica, interdisciplinar e intersetorial, as necessidades não atendidas que ensejaram a deflagração do conflito familiar, tratando das causas que lhe deram origem, e cujo ápice é a subtração da criança.
2.1 A dogmática da Convenção de Haia e possibilidade do uso de métodos consensuais de resolução de disputas
Com o intento de analisar a possibilidade de aplicação das práticas restaurativas em ações que envolvem o retorno de criança subtraída, vale, primeiramente, examinar algumas disposições da Convenção de Haia de 1980, bem como do Manual de Aplicação da Convenção de Haia de 1980 do Conselho da Justiça Federal (2021), para se compreender qual o significado que as normas atribuem à solução consensual de conflitos em casos desta natureza.
A Convenção de Haia de 1980 foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº3.413, de 14/04/2000 (BRASIL, 2000). Ao dispor sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças e jovens de até 16 anos (art. 4º), ela tem como objetivo proteger as crianças que foram subtraídas do local de sua residência habitual por um dos seus genitores, sem autorização de outro, visando o retorno imediato a seu país de origem, para que lá possam ser resolvidas as questões relativas à guarda.
Essa norma prevê o estabelecimento de autoridades centrais, que são órgãos internos responsáveis pela cooperação jurídica entre os países signatários, a quem incumbe assegurar o retorno imediato das crianças e realizar os demais atos de cooperação jurisdicional direta. A Autoridade Central deve receber, analisar e transmitir os pedidos de cooperação. No Brasil, essa função cabe à ACAF – órgão da Secretaria de Direitos Humanos da República (ACAF/SDH), vinculada ao Ministério da Justiça (BRASIL, [s.d.]).
A Convenção, além de seus efeitos coercitivos, como prevenção geral, visa a desencorajar a subtração internacional, e, também, evitar o “fórum shopping” (ou a escolha da jurisdição), que é a prática de iniciar procedimentos judiciais na jurisdição que se acredita ser mais favorável ao demandante, em detrimento da jurisdição competente, que é o local de residência habitual da criança.
Com a aplicação dessa norma, pretende-se contornar os problemas relacionados principalmente à demora na prestação jurisdicional e à delonga dos procedimentos. No entanto, ela representa um enorme desafio para os Estados contratantes, impelindo-os a encontrar soluções criativas rápidas para sua implementação enquanto asseguram os direitos das crianças. Nesse contexto, mecanismos conhecidos como “Alternative Dispute Resolutions” (ADR), que têm sido considerados em muitos países como soluções de melhor qualidade e de maior celeridade para disputas familiares, ganhou status na Conferência de Haia.
A promoção de soluções amigáveis tem sido considerada como uma das obrigações dos Estados, sendo prevista nos artigos 7 e 21 da CH de 1980. As diretrizes para a utilização da mediação e de outros mecanismos de ADR na subtração internacional foram acordadas na Conferência de Haia recentemente, resultando na publicação do “Guia de Boas Práticas - Guia de Mediação” (2018), que busca encorajar a mediação nessas disputas. A justificativa para a adoção de soluções amigáveis reside no fato de que são consideradas como sendo de menor custo financeiro e emocional, sendo meios mais comprometidos com questões subjetivas e com maiores chances de cumprimento espontâneo das obrigações consensuadas.
No entanto, a mediação não é infensa a dificuldades. Nos casos de Haia, a opção por um método consensual pode ser desafiadora, principalmente por conta das diferenças culturais, dos constrangimentos de tempo, distâncias entre as partes e dos chamados “enforcement of agreements” nas duas (ou mais) jurisdições, ou força executória dos acordos. Isso faz com que a mediação ou outro método consensual, como a JR, muitas vezes, demande adaptação a diferentes molduras culturais e fundamentos legais, razão pela qual a Conferência de Haia optou por um conceito mais amplo de mediação.
Não obstante a Convenção de Haia (1980) tenha entrado em vigor no Brasil em 2000, o uso da mediação ou outro método consensual aqui é recente. A promoção de alternativas à adjudicação, por questões de tradição jurídica e cultura de resolução heterocompositiva de conflitos, é geralmente vista como um remédio para a lentidão dos procedimentos judiciais, sendo, não raro, consideradas uma justiça de “segunda mão”, ou “second hand justice”, nos dizeres de Owen Fiss (1984). Ou seja, uma justiça para aqueles que não possuem os recursos necessários para suportar os diversos custos um processo judicial (FISS, 1984).
O uso da mediação e de outras formas de ADR no Brasil, nos casos de subtração internacional de crianças, ainda é experimental, tendo sido introduzida para evitar as delongas do processo judicial, cujas consequências são piores nos casos da Convenção. No entanto, a promoção de acordos amigáveis seja por meio da conciliação, da mediação ou da justiça restaurativa, tem provado ter um importante papel na solução dessas disputas.
2.2 Aspectos formais envolvendo o procedimento previsto na Convenção de Haia de 1980 e a possibilidade do uso de mediação: Manual de Boas Práticas da Convenção e Manual de Aplicação da Convenção de Haia de 1980 do CNJ
O Brasil tem responsabilidade internacional na aplicação da Convenção de Haia, devendo cuidar do fator tempo. Os Estados contratantes, pois, têm a obrigação de tomar todas as medidas apropriadas para providenciar a locação e a expedição de retorno, tanto voluntariamente quanto por ordem administrativa ou judicial, de qualquer criança que tenha sido removida ilegalmente do seu território de residência habitual. E para garantir esse objetivo, a Convenção inclui a instituição da Autoridade Central, que é a instituição focal para receber e iniciar pedidos.
A Autoridade Central (AC) deve manter cooperação direta e próxima com outras ACs de outros Estados membros da Convenção, sendo sua intenção diminuir as formalidades e implementar meios de cooperação informais, diretos e procedimentos simplificados, estabelecendo uma relação de confiança e contato entre as demais autoridades centrais dos países contratantes. Assim, evita-se a consularização, a expedição de cartas rogatórias e a necessidade de homologação de sentenças estrangeiras, o que acarretaria mais delongas ao procedimento.
A Convenção usa como fator de conexão para decidir a jurisdição no qual os direitos de custódia deverão ser avaliados a residência habitual da criança. A remoção ilícita ocorre quando são violados os direitos de guarda conferidos pela lei do estado em que a criança era residente habitual e desde que esses direitos estivessem sendo exercidos antes da remoção (art. 1). Em termos de procedimento, primeiramente, é importante consignar que cabe ao left behind parent iniciar o procedimento junto à AC do país de origem, conforme regramento local, que entrará e contato com a AC do país requerido, para início do procedimento administrativo.
Segundo o Manual de Aplicação da Convenção de Haia (2021), as ACs deverão tomar todas as medidas apropriadas para localizar a criança transferida ou ilicitamente retida; para evitar novos danos à criança ou prejuízos aos interessados; para assegurar a entrega voluntária da criança ou facilitar uma solução consensual; para promover a troca de informações sobre a situação social da criança e informar questões relativas à legislação pátria, entre outros (CJF, 2021).
Nota-se que está prevista, enquanto boa prática e de acordo com o Manual de Boas Práticas de Haia (2018), a busca pela solução amigável ou retorno voluntário que acarrete o mínimo de dano à criança, evitando-se o desgaste da disputa judicial e reduzindo os custos de representação profissional. A mediação é considerada pelo Manual uma boa prática, uma vez que pode facilitar a comunicação entre as partes e permitir a assunção de responsabilidades por cada envolvido para que construam uma solução amigável. Quanto à localização das crianças, é previsto que a Interpol proceda às diligências para localizá-la, independentemente da existência prévia de inquérito policial (HAIA, 1980).
O Manual também reconhece que a judicialização prematura dos litígios pode inviabilizar a solução consensual e adequada do conflito, razão pela qual recomenda de forma expressa a busca de profissionais que possam facilitar e estimular a solução amigável. Ademais, reconhece que a mediação é uma maneira de permitir retorno voluntário da criança com menor custo econômico e prejuízo emocional para todos. Assim, recomenda-se que a AC proceda à adoção de procedimento administrativo com mediadores aptos para conduzir as partes a uma solução pacífica da controvérsia (CONFERÊNCIA DA HAIA, 2018, p. 16).
Observa-se, portanto, que há espaço para a mediação e, também, para a adoção de outros métodos consensuais, entre eles a JR, já na fase administrativa, a cargo Ministério da Justiça, no Brasil. Contudo, salvo algumas exceções em que a questão foi resolvida de forma pré-processual, pouco se tem notícia da adoção habitual de métodos pelo órgão do Poder Executivo, razão pela qual a judicialização do conflito, por meio da AGU, tem sido o caminho mais utilizado.
Caso não seja possível a solução da questão pela AC, o processo administrativo será encaminhado para a AGU,[4] para o cumprimento do compromisso internacional relativo ao enfrentamento da subtração internacional de crianças. Por se tratar de tratado e convenção internacional, a competência para o processamento e julgamento do feito é da Justiça Federal (art. 109, inciso V, da CF).
Judicializada a demanda, recomenda-se a realização de audiência de conciliação, uma vez que a própria Conferência de Haia percebe dificuldades para garantir seu cumprimento voluntário quando há imposição de decisão heterônoma às partes, em razão justamente da diversidade de sistemas jurídicos implicados no efetivo cumprimento de prestações de trato sucessivo, como as obrigações familiares. Por tal motivo, reconhece-se que a aplicação da norma pode se tornar uma nova fonte de conflitos ante ao eventual descumprimento de obrigações impostas.
Assim, a Resolução nº 449/2022 do CNJ recomenda que os juízes designem audiência de mediação, que será realizada na forma da lei processual civil, buscando soluções consensuais para o conflito, no prazo de 30 dias (art. 10, III; art. 13). Se os envolvidos anuírem em participar de procedimento consensual, a criança pode ser ouvida ou não. O Manual de Boas Práticas (2018) assevera que a oitiva da criança, no âmbito da ação fundada na CH de 1980, há de ser deliberada com a estrita finalidade de se definir a maneira como se efetivará o retorno do infante ao estado de residência habitual, bem como as medidas para o convívio da criança com ambos os genitores, até que se viabilize a cognição pelo juiz natural.
Tal aspecto do Manual (2018) demonstra mais uma vez a preocupação da Convenção em oferecer espaços de escuta, corroborando o entendimento de que a sua aplicação dogmática pode causar, sob o manto da legalidade estrita, mais traumas e violações irreversíveis não só para a criança mas para toda a família. O Manual de Boas Práticas (2018) também prevê que o eventual acordo contenha medidas de cautela para garantir o bom convívio com os genitores, como questões relativas a documentos de viagens, vistos, e medidas relativas a custos com viagens internacionais. O acordo poderá prever, ainda, questões relativas a alimentos provisórios, custeios de despesas com saúde, educação, lazer e regras de convívio, como possibilidades de videochamadas periódicas. Para que o acordo tenha força executória em ambos os países signatários da Convenção de Haia, é necessário haver uma dupla homologação judicial, no país requerente e no país requerido.
Desse modo, as tratativas em sede de mediação ou justiça restaurativa não estão limitadas ao retorno, ou não, das crianças, mas podem abranger outras prestações relativas ao exercício da parentalidade, desde que haja consenso e homologação pelo juiz da causa e, ainda, para a garantia da executoriedade em ambas as jurisdições, que o acordo seja submetido às regras procedimentais de cada ordem jurídica para sua total validade.
Assim sendo, essa possível ampliação das questões negociáveis contribui sobremaneira para o acertamento de diferenças, satisfação de necessidades, consideração de interesses dos envolvidos, de modo a permitir uma conivência parental mais pacífica e com foco nos interesses e no bem-estar da criança, evitando-se, então, conflitos familiares futuros.
[4] A AGU é o órgão de representação processual da União Federal em juízo e, por isso, defende os interesses do ente federativo, sobretudo o cumprimento de normas internacionais. No deslinde do processo, deverá permanecer em contato com a autoridade central brasileira.
3 CONFLITOS FAMILIARES, SUBTRAÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS E A POSSIBILIDADE DE ENDERAÇAMENTO DE CASOS PARA A MEDIAÇÃO OU JUSTIÇA RESTAURATIVA
A dogmática jurídica efetua um recorte objetivo e abstrato do litígio, e transforma um conflito social, real, tangível e palpável, em casos jurídicos abstratos, burocraticamente descritos em sequências simplificadas, com o objetivo de possibilitar a cognição pelo julgador, o que se denomina de astúcia da razão dogmática.
Nas ações fundadas na Convenção de Haia, havia pouco espaço para tratar questões subjacentes. O tempo exigido pelo tratado internacional para a tramitação de tais processos é de seis semanas, razão pela qual muitos magistrados se sentem pressionados a dar cumprimento célere, baseado em trâmites legais, cuja profundidade cognitiva não alcança as questões subjacentes. Há, ainda, metas específicas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça para o julgamento apressado destes casos (Meta 08). Nesse contexto burocratizado e despersonalizado, em que a produção de sentenças obedece a uma escala industrial, qual o espaço para, de fato, cuidar dos laços familiares?
A dogmática e a necessária simplificação do conflito para subsunção à norma fazem com que uma questão intrinsecamente familiar, de natureza psicológica ou sociológica, envolvendo traumas e sofrimentos, seja, por meio da linguagem jurídica, imaginada e debatida como uma violação à ordem jurídica dos países signatários da Convenção de Haia.
Assim, o raciocínio jurídico tradicional afasta muitas vezes a compreensão da natureza sociológica e da complexidade emocional dos conflitos familiares e das transformações sociais que família contemporânea tem vivenciado, despreocupando-se com questões afetivas e emocionais, e tratando como questão central problemas fictícios, como mero restabelecimento da ordem jurídica internacional. Por tal razão, o movimento conhecido como Alternative Dispute Resolution, cujas raízes remontam à Pound Conference de 1976 e ao Projeto Florença, capitaneado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988), problematiza a questão da via judicial como a única porta de acesso à justiça, propondo a metáfora do Tribunal Multiportas como símbolo de uma justiça que oferta aos cidadãos diversos mecanismos de solução de disputas, para que, de acordo com as especificidades dos casos e a predisposição dos envolvidos, seja aplicada uma metodologia adequada ao contexto conflitivo (ALMEIDA; FERNANDES, 2019; FERNANDES, 2021).
3.1 Conflitos familiares no centro da aplicação da Convenção de Haia de 1980
Os conflitos familiares estão no epicentro das questões envolvendo subtração internacional de criança. E, como apontado anteriormente, a dogmática jurídica e o processo tradicional não ofertam espaços qualificados para a abordagem e endereçamento das questões subjacentes, das paixões, dos afetos feridos que compõem a tessitura desses conflitos multiplexos (FILPO; FERNANDES, 2020).
Luis Alberto Warat (1994) questiona a dogmática como via de resolução para conflitos permeados de afetos e dores. O filósofo do direito e mediador argentino chama de senso comum teórico dos juristas a “constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente os atos de decisão (judiciária) e de enunciação do direito”. Esse senso comum permeia o imaginário dos atores jurídicos, configurando convenções linguísticas e práticas e condicionando a lente através da qual se enxerga, juridicamente, o conflito. Esses condicionamentos levam, inexoravelmente, à simplificação jurídica da realidade e à visão parcial das dimensões do conflito (pessoal, interpessoal e coletiva).
Esse senso comum teórico dos juristas (WARAT, 1994) pode levar à interpretação categórica quanto à inadmissibilidade da violação da ordem jurídica internacional pelo cônjuge subtraente perante a CH de 1980, presumindo que o local de residência habitual é o local que melhor acolhe os interesses do infante, salvo situações especialíssimas que devem ser interpretadas restritivamente, como são os casos de abusos e de violência doméstica (art. 21).
Para se superar o senso comum teórico, é importante o manejo de aportes interdisciplinares, vindos da sociologia, da psicologia, da psicanálise, da antropologia. Saberes que se entrecruzam em uma malha interdisciplinar que permite um olhar mais crítico em relação às soluções formalistas trazidas pelo processo judicial.
As relações entre humanos não se dão por um elo apenas, mas por inúmeros fatores de convergência e divergência que causam aparentes contradições que, em verdade, são inerentes à própria relação. A aparente homogeneidade das relações esconde, em geral, uma heterogeneidade e um dos grandes exemplos citados por George Simmel (1983, p. 130) é justamente as relações eróticas, que são a gênese formadora das relações familiares, inclusive as reguladas pela Convenção de Haia.
O choque de personalidades em um relacionamento emocionalmente intenso, somado à complexidade da vida contemporânea no âmbito familiar, não raro gera dinâmicas conflituosas que, por vezes, deflagram atitudes impulsivas, como, por exemplo, a violência doméstica, a mais intensa manifestação exterior destes conflitos intersubjetivos. A própria subtração de menores perpetrada pode configurar um ato violento não só contra a ordem jurídica do país originário, mas principalmente contra o left behind parent e, sobretudo, contra a criança privada forçadamente do convívio com um dos genitores e retirada se seu contexto cultural habitual.
A intensidade do convívio afetivo, as intricadas relações subjetivas, os afetos envolvidos e a complexa dinâmica da sociedade contemporânea põem em xeque a unidade das famílias tradicionais, outrora compreendidas como a base da sociedade moderna. Segundo os sociólogos Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim (2012), as tradições, regras e diretrizes que regiam os relacionamentos não se aplicam mais como anteriormente, e os indivíduos enfrentam uma série interminável de escolhas, como parte da construção, adaptação, aperfeiçoamento ou dissolução das uniões que forma com outras pessoas.
Se um divórcio, dadas suas causas e forma de condução pelos ex-cônjuges, é um evento traumatogênico, podendo causar profundos impactos psicológicos na prole, o que esperar de uma abrupta subtração ilícita de uma infante, por um dos cônjuges, com uma mudança para outro país? Quais as mazelas socioculturais e psíquicas desta mudança para todos os envolvidos? A dogmática jurídica, preocupada com a abstrata ordem jurídica dos países convencionados, com sua ritualística processual, é suficiente para enfrentar um conflito com esta magnitude e com tais consequências? O prazo convencional de seis semanas para se julgar a ação fundada na Convenção e as metas do CNJ para o processamento destes feitos são suficientes para administrar um litígio com esta profundidade? São questões que permeiam o cotidiano dos profissionais que trabalham com esses casos.
No movimento de tentar responder a esses questionamentos, é importante compreender a dinâmicas dos conflitos, principalmente familiares. Nesse ponto, há que se ressaltar que o conflito entre humanos é natural e inerente às próprias relações, sobretudo em casos conjugais, razão pela qual pode ser analisado de forma positiva. Segundo Fernandes (2021, p. 67), a controvérsia pode muito bem ser “oportunidade para o desenvolvimento de novas habilidades, para o trabalho de inclusão e reconhecimento dos direitos e de identidades, de emancipação e amadurecimento, e superação dos status anteriores, muitas vezes opressores”.
No entanto, o processo judicial possui pouco espaço para essa transformação do conflito o que, no caso de demandas familiares, gera preocupação, pois o tecido social não será reconstruído pela sentença, razão pela qual as sucessivas obrigações posteriores, típicas de relacionamentos continuados, podem acarretar novos conflitos, gerando demandas filhotes, uma vez que o processo judicial adversarial e a lógica perde/ganha da adjudicação reforçam o caráter competitivo de uma relação cuja cooperação já estava afetada.
Essa é a razão pela qual determinados conflitos, permeados por questões subjacentes, devem ser endereçadas para formas “alternativas” ao processo judicial, como conciliação, mediação, arbitragem e justiça restaurativa – que possuem maior potencial gerativo, em um contexto de transformação de conflitos narrado por Jean Paul Lederach (2012) (FERNANDES, 2021).
3.2 A utilização de meios consensuais em casos envolvendo a subtração internacional de criança
O ordenamento jurídico pátrio conta com diversas normas que preveem e incentivam a adoção de métodos consensuais de resolução de conflitos. Além da Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), o próprio CPC/2015 prevê a necessidade de realização de audiências de mediação em caso de conflitos familiares, uma vez que o restabelecimento do tecido social rompido pelo conflito deve ser o foco das ações fundadas em Direito de Família, como nos casos da Convenção de Haia.
A mediação, enquanto forma autocompositiva de resolução de conflitos regulada pela Lei nº13.140/2015, mostra-se adequada para conflitos familiares, uma vez que permite o tratamento das questões subjacentes contidas na lide sociológica, sendo recomendada para casos nos quais haja prévio vínculo entre as partes (FERNANDES; FILPO, 2020). Inclusive, a Resolução 125/2010 do CNJ, que inaugurou a Política Nacional de Tratamento Adequado aos Conflitos, tendo aberto espaço para a institucionalização de formas alternativas de resolução dos litígios a partir da ideia de Tribunal Multiportas, reconhece essa potencialidade.
Malgrado as vantagens da mediação, é importante ressaltar que esta técnica encontra algumas limitações. Embora se aprofunde em questões subjacentes, seu setting é mais restrito para a abordagem e endereçamento de questões sistêmicas, intersetoriais e interdisciplinares, o que pode restringir seu potencial para o tratamento de intricadas questões que, não raro, compõem o emaranhado dos conflitos, a exemplo de questões que envolvem violência de gênero, abusos, violências estruturais, traumas individuais ou intergeracionais.
Com o mister de traduzir a necessidade social por novos meios de resolução que permitam a consideração de questões pessoais, interpessoais e coletivas e seus diversos níveis, e, também, como forma de trazer uma possibilidade de resposta aos crimes, ofensas e conflitos complexos fora da lógica da punição e da identidade binária e adversarial da justiça tradicional, o CNJ, por meio da Resolução nº 225/2016 inaugurou formalmente a Política Nacional de Justiça Restaurativa. O foco dessa política é a garantia de um acesso substancial à justiça a partir de uma abordagem que reconheça a complexidade do fenômeno dos conflitos, seus aspectos relacionais, comunitários, institucionais e sociais e que seja capaz de reparar os danos e endereçar as necessidades de todos envolvidos na disputa.
A JR, portanto, pode ser considerada como um paradigma que foca na responsabilização ativa dos envolvidos (cada qual assumindo sua cota de responsabilidade), na reparação dos danos (entendidos em sentido mais amplo), no engajamento das partes na construção de uma solução que atenda as necessidades de todos, na “accountability” (prestação de contas diante dos envolvidos e das instituições).
Esse paradigma visa, em última análise, oferecer uma resposta alternativa ao fenômeno delitivo e às disputas que diverge da lógica punitiva e na atribuição de culpa.
Nas palavras de Howard Zehr (2018), a mudança de paradigma da justiça retributiva para a justiça restaurativa é uma verdadeira troca de lentes, pois a lógica restaurativa busca o restabelecimento do tecido social rompido pela deflagração do conflito, a recomposição dos laços, por meio de um caráter sistêmico, buscando o desenvolvimento de estratégias para o atendimento dos casos, integração das redes familiares e comunitárias, bem como de políticas públicas. Ainda, a JR possui um olhar interinstitucional e interdisciplinar, buscando integrar as diversas áreas científicas dedicadas aos estudos dos conflitos, dentro do paradigma da complexidade tratada por Edgar Morin (1990).
No entanto, é preciso ser humilde no campo dos conflitos: nem sempre a recomposição dos laços será possível, o que não afasta, de per si, o potencial da lógica restaurativa. Nesses casos, o foco deve ser na oferta de um procedimento respeitoso, claro e justo para todos os envolvidos. O respeito à dignidade é um norte da JR, em um espaço horizontalizado, dialógico, imparcial, inclusivo, que observe seus princípios básicos, conforme previsto no art. 2º da Res. 225/2016 e na Resolução do Conselho Econômico e Social da ONU 2002/12 (ECOSOC, 2002).
A JR, pois, transcende a mediação no que toca à abertura procedimental para se tratar questões subjacentes com maior profundidade, analisando, além do conflito intersubjetivo, as questões sistêmicas que estruturam as relações. Ela permite um olhar holístico e ecológico (CAPRA; LUISI, 2004) para o conflito, superando o paradigma mecanicista, racional e burocrático da dogmática tradicional.
Para tanto, a JR é operacionalizada a partir de metodologias como a mediação vítima-ofensor-comunidade, a conferência de grupo familiar, as conferências restaurativas, os círculos de construção de paz. Por meio de tais metodologias, a JR busca compreender as necessidades dos envolvidos no conflito, proceder à oitiva das narrativas traumáticas e possibilitar o reconhecimento mútuo entre as partes e, assim, contribuir para a assunção ativa da responsabilidade por cada um na relação e a reparação dos danos por parte do ofensor. Tais métodos têm como moldura procedimental a horizontalidade, a confidencialidade, a imparcialidade do facilitador, a voluntariedade, e como valores a empatia, o respeito, a escuta ativa.
Nos casos de subtração internacional de crianças, a abordagem restaurativa possibilita a renúncia aos rótulos ofensor/vítima, permitindo a consideração das relações mútuas e da cota de responsabilidade de cada um pelo conflito. Ou seja, ela permite a retirada da categorização para se perceber as relações multiplexas e as dinâmicas complexas que envolvem os conflitos familiares sob exame.
Em um contexto de fórum de múltiplas portas, questiona-se: quais causas devem ser encaminhadas à justiça restaurativa? Segundo Fernandes (2021, p. 73), é importante avaliar o potencial gerativo do conflito, isto é, “se ele tende a gerar demandas filhotes caso submetido ao meio adversarial (processo formal), contribuindo para a espiral conflitiva, em razão dos traumas nele decorrentes”, ainda, a voluntariedade deve ser sempre observada como fator indispensável para o encaminhamento do caso para uma das metodologias restaurativas. Ademais, cabe ao núcleo responsável pela derivação analisar preliminarmente se o caso pode seguir para a mediação, para a justiça restaurativa ou deve ser submetida estritamente ao processo judicial (principalmente em caso de ausência de voluntariedade).
O que se pode chamar de “screening”, ou seja, o mapeamento do conflito buscando avaliar se ele é adequado ou não para a mediação ou JR (FERNANDES, 2021).
As ações fundadas na Convenção de Haia, sobretudo em virtude da lide sociológica, teoricamente são indicadas para a derivação do processo para os CEJUREs, uma vez que suas técnicas, quando bem conduzidas por facilitadores capacitados, podem possibilitar acordos satisfatórios, uma vez que os conflitos familiares transnacionais, por seu caráter multicultural, interdisciplinar e intersetorial, demandam análise mais acurada das causas subjacentes e o endereçamento das necessidades dos envolvidos, para um efetivo e menos traumático cumprimento da Convenção de Haia.
No entanto, é preciso reconhecer que a derivação encontra barreiras que devem ser avaliadas em cada caso concreto: voluntariedade; alegação de violência doméstica ou abuso contra a criança; casos de busca de asilo, entre outros. A rigor, nada impediria que esses casos sejam endereçados à JR ou outro método consensual, mas é necessário verificar se a legislação do outro estado-contratante opõe óbices à utilização de métodos consensuais em casos envolvendo violência doméstica ou abuso. Esse fato é sobremaneira relevante, pois eventual acordo a ser alcançado deve ser exequível nas duas ordens jurídicas envolvidas.
Eventual adjudicação, sem a oportunidade de mediação ou JR e sem o tratamento adequado do conflito, pode gerar resultados desastrosos para a criança e para a relação parental, que não se dissolve com a separação ou divórcio. Em muitos casos, agrava quadros de alienação parental, aprofunda traumas e acarreta diversas decisões jurídicas (que podem até ser contraditórias), perpetuando o conflito.
O caso mais emblemático e midiático no Brasil é conhecido como o caso do menino Sean Goldman,[5] que envolveu uma batalha judicial por quase 5 anos, entre 2004 e 2009, que que acarretou descumprimento da Convenção por parte do governo Brasileiro, impactando as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. O caso, inclusive, gerou a Lei Sean e David Goldman, que prevê retaliações, pelos EUA, a países que descumprirem a Convenção de Haia.[6]
A natureza sociológica dos conflitos familiares, repisa-se, demanda das autoridades judiciárias uma postura que busque a cooperação entre as partes, uma vez que o processo judicial reforça a adversariedade e a competição, podendo impactar o futuro cumprimento das obrigações familiares de afeto, alimentos e a consolidação dos laços de parentalidade.
O próprio Manual de Boas Práticas da Convenção de Haia (2018), como soft law, incentiva a mediação, assim como a Resolução 449/2022 do Conselho Nacional de Justiça. Todavia, não obstante essas diretrizes para o encaminhamento de casos envolvendo a Convenção para a mediação, nada obsta que, ao invés, eles sejam direcionados a práticas restaurativas, seja para CCPs, VOCs, ou conferências de grupo familiar ou, ainda, outra metodologia desenhada segundo as particularidades do caso concreto, considerando a artesania e a abertura conceitual da JR.
Como modelo em expansão no Brasil, alguns tribunais vêm experimentando a derivação de processos judiciais para os CEJUREs, o que gera um dever cada vez maior de avaliar as práticas, as técnicas e seus resultados, buscando a construção e a difusão de saberes experienciais que possam ser úteis à consolidação e à expansão da Política Nacional de Justiça Restaurativa, para que suas técnicas, métodos e resultados possam impactar na cultura jurídica brasileira. É o que se passará a analisar no próximo item, em poucas linhas, a partir de um exemplo de caso fundamentado na Convenção e encaminhado para a JR.
[5] Para maiores informações sobre o caso, acessar https://www.youtube.com/watch?v=k_daVxZIFdc.
[6] USA CONGRESS. H.R. 312 – Sean and David Goldman International Child Abduction Prevention and Return Act of 2014. Disponível em: https://www.congress.gov/bill/113th-congress/house-bill/3212/text. Acesso em: 8 mar. 2023.
4. DA TEORIA PARA A PRÁTICA: ESTUDO DE CASO ENVOLVENDO ENCAMINHAMENTO PARA A JR DE CASO ENVOLVENDO SUBTRAÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
Um recente caso ocorrido no âmbito do TRF da 4ª Região demonstra o esforço de facilitadores em oferecer aos envolvidos essa oportunidade de amplo diálogo, tratamento profundo do conflito e de suas causas subjacentes, trocas narrativas e construção de narrativas alternativas, visando a pavimentar caminhos mais saudáveis para as relações parentais e para o desenvolvimento emocional da criança.
Visando manter confidencialidade, os nomes dos envolvidos no caso foram omitidos, assim como o do país envolvido, tendo sido mantida a originalidade do fenômeno observado, com a preservação do sigilo, honrando-se, assim, um dos princípios basilares das práticas restaurativas: a confidencialidade.
Genitor (55 anos) e genitora (25 anos), naturais e residentes em localidade fronteiriça ao Brasil (país de residência habitual das crianças), relacionaram-se afetivamente por oito anos e tiveram 2 filhos, estando hoje com 8 e 4 anos. O genitor exerce atividade de motorista de uma companhia de saneamento e, por tal razão, permanece longos períodos na estrada, conforme alegou. A genitora exerce atividade doméstica e cuida dos infantes. A cônjuge subtraente alegou no caso que, após episódios de violência doméstica, resolveu vir para o Brasil com as duas crianças, sem autorização do genitor. No Brasil, passou a residir em área de ocupação irregular, fixando residência próxima a sua prima e a sua avó. Aqui estando, a genitora ajuizou medida protetiva em desfavor do ex-companheiro, por receio de sofrer violência doméstica em território brasileiro.
O genitor, por sua vez, procurou a Autoridade Central do país de residência habitual das crianças solicitando auxílio jurídico e busca, apreensão e restituição dos menores. A ACAF encaminhou o pedido à AGU, que, instada, ajuizou procedimento comum, no qual requereu a procedência do pedido de restituição, a busca e apreensão das crianças e a restituição às autoridades do país de residência habitual, uma vez que as hipóteses de exceção ao retorno dos infantes, previstas na CH de 1980, não estariam contempladas.
O magistrado do feito deferiu liminarmente a apreensão dos documentos dos infantes e da genitora subtraente com vistas a minimizar os riscos de deslocamento para outras localidades e determinou o processamento regular do feito. A requerida, representada pela DPU, apresentou contestação, alegando risco de abandono afetivo e material dos infantes em caso de retorno ao país de residência habitual. Por ocasião da decisão de saneamento do processo, o juiz derivou o caso ao CEJURE para o adequado tratamento do conflito.
Os facilitadores JR, devidamente capacitados, procederam à análise do conflito (mapeamento ou screening), identificando pontos controversos, questões subjacentes e possíveis necessidades dos envolvidos. Primeiramente, foram realizados pré-círculos com os genitores, com o objetivo de mapeamento dinâmico do conflito, verificação se o caso era adequado para a justiça restaurativa, explicação quanto aos princípios da JR (Res. 225/2016, art. 2º) e verificação da voluntariedade e predisposição dos envolvidos em participar. Nessas ocasiões, por meio de perguntas norteadoras, foram levantadas as necessidades e fixados pontos controvertidos.
A genitora, desde o início, demonstrou-se favorável ao procedimento restaurativo, embora tivesse receio de encontrar seu ex-companheiro sem a presença dos facilitadores. Asseverou que não retornaria ao país de residência habitual, uma vez que os filhos já estavam habituados à cultura brasileira, frequentando escola, participando de programas sociais. Ainda, justificou essa resistência por acreditar que o retorno ao país de origem seria trágico, pois o genitor, embora fosse um pai amoroso, exercia uma profissão que não permitia o cuidado contínuo dos infantes. Contudo, não se oporia caso o genitor desejasse participar, periodicamente, do convívio com os filhos.
O genitor, por sua vez, mostrou-se reticente a participar do procedimento restaurativo, manifestando seu desejo de retorno imediato dos seus filhos ao país de residência habitual. Durante as sessões preliminares, verbalizou sua insatisfação em relação à subtração dos menores e ao abandono da ex-companheira.
A partir da escuta ativa das narrativas dos envolvidos, os facilitadores esclareceram que atuavam na condição de horizontalidade, em cooperação internacional entre os países, esclarecendo as vantagens do procedimento restaurativo, principalmente quanto à sua potencialidade possibilitar um diálogo saudável no campo da parentalidade, enaltecendo o empoderamento dos genitores para definir, conjuntamente, o destino de suas vidas e o melhor interesse dos filhos. Os facilitadores também abordaram aspectos relacionados ao processo judicial em relação ao método consensual. Após explicações pormenorizadas sobre o procedimento restaurativo, suas fases, objetivos, princípios, valores, o genitor voluntariamente consentiu em participar.
Ao todo foram realizadas dezesseis sessões restaurativas, em que se combinou técnicas de CCP e VOC, trabalhando-se individualmente temas sobre profissão, masculinidade tóxica, parentalidade, maternidade, paternidade, nacionalidade, redes de apoio. Também foram trazidos assuntos sobre a vida social, em uma abordagem sistêmica, interdisciplinar e intersetorial. Antes de realizar o primeiro encontro conjunto, por meio virtual, tomou-se o compromisso de voluntariedade (consentimento) e respeito mútuo entre os participantes.
O primeiro encontro conjunto foi um CCP, com os elementos estruturais dessa metodologia (PRANIS, 2010): abertura, apresentação, check-in, construção de diretrizes e valores, perguntas norteadoras, check-out e encerramento. Foram exibidas fotos dos infantes e realizadas perguntas norteadoras sobre o passado, presente e futuro das crianças, o que fez com que os genitores compreendessem que uma boa relação parental é essencial para o desenvolvimento sadio das crianças. Encerrado esse encontro, criou-se um ambiente de acolhimento para o restabelecimento do diálogo entre os genitores, tendo sido designados novos pré-círculos individuais.
No pré-círculo individual após o encontro, foram trabalhadas questões envolvendo masculinidade tóxica e rede de apoio. Na ocasião, após ouvir o facilitador tratar sobre limitações humanas, o genitor vivenciou um gestalt shift (FERNANDES, 2021): admitiu, a partir daí, que sua atividade profissional realmente impede o cuidado diário dos infantes; demonstrou ter compreendido que o melhor interesse dos menores era, por ora, permanecer sob a guarda de sua genitora, no Brasil. Desse modo, desistia da restituição das crianças ao país de residência habitual, sob certas condições. Nessa ocasião, manifestou desejo de participar, no mínimo mensalmente, do convívio com os filhos, além do período envolvendo férias escolares, feriados e final de ano. Essas foram as condições por ele apresentadas para que o acordo em relação à permanência das crianças com a genitora no Brasil fosse realizado. As condições foram levadas a genitora, que concordou com os termos.
Por fim, foi realizado um CCP presencialmente, em território brasileiro, para celebrar o primeiro acordo restaurativo envolvendo ação fundada na Convenção de Haia na justiça federal brasileira. Na ocasião, ambos os genitores estiveram presentes e trataram-se respeitosamente. No final de semana posterior à celebração do acordo, as crianças foram visitar seu genitor no país que antes era sua residência habitual. As crianças permaneceram no Brasil, a despeito do teor da Convenção de Haia, e honrando-se a autonomia das partes envolvidas que acordaram novos termos para a fixação da residência habitual e direitos de visitas, e o acordo segue sendo monitorado pelo CEJURE, por meio de pós-círculos, após ter sido realizada sua homologação judicial.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo versou sobre a aplicabilidade da JR nas ações fundadas envolvendo subtração internacional de crianças, tendo refletido sobre a Convenção de Haia e sua aplicação objetiva e dogmática aos casos envolvendo subtração internacional de crianças. A partir de aportes interdisciplinares, que consideram análises sobre conflitos humanos, complexidade, aspectos relacionados a divergências familiares, potencial generativo de traumas, limites da dogmática jurídica, conclui-se que, muitas vezes, os limites da própria função jurisdicional no âmbito processual são insuficientes para pacificar os conflitos familiares, que, dada sua específica natureza sociológica, são permeados de questões subjacentes, dificilmente contempladas pelo recorte jurídico tradicional.
Assim, utilizando-se do método hermenêutico-crítico, buscou-se interpretar os textos normativos da Convenção de Haia, enquanto instrumento de hard law, e o Manual de Aplicação do Conselho da Justiça Federal, enquanto soft law, investigando as possibilidades jurídicas para o endereçamento dos conflitos familiares. Buscou-se, pois, o estabelecimento de um diálogo entre o direito, enquanto ciência dogmática, com as ciências zetéticas (aqui, a sociologia, a psicologia e a filosofia), para melhor compreensão da realidade na qual se deseja intervir e para a proposição de soluções compatíveis com a realidade social do conflito.
A hipótese central deste trabalho foi confirmada a partir do estudo de caso e aprofundamento crítico na literatura adotada como marco teórico: que o processo tradicional e seus ritos formalistas e instrumentais não permitem uma profundidade cognitiva das questões sociológicas envolvendo a dinâmica dos conflitos familiares, principalmente aqueles que relativos a subtração de crianças, em razão de seu forte potencial traumatogênico. Desse modo, a letra rígida da norma internacional pode ensejar decisões judiciais potencialmente traumáticas para as partes envolvidas, sobretudo para as crianças, porquanto o retorno forçado, decorrente da coercitividade da decisão, pode ocorrer sem que os interesses dos genitores e das próprias crianças e suas necessidades sejam levados em consideração.
O processo judicial é, em geral, surdo para essas questões humanas mais profundas que retroalimentam espirais conflitivas. Conflitos familiares são permeados de paixões, e, no processo, não há lugar para elas e nem para seu adequado endereçamento e abordagem. Desse modo, a partir do estudo de caso trazido, em que foram aplicadas técnicas da justiça restaurativa em ação fundada na Convenção de Haia, utilizando-se de saberes experienciais de facilitador, é possível concluir que a justiça restaurativa é metodologia adequada para muitos casos envolvendo subtração internacional de crianças, seja pela possibilidade de aprofundamento nas questões psicológicas, sociológicas e políticas que gravitam em torno desses conflitos, seja em razão da abertura para a participação de outras pessoas que podem auxiliar a compreensão e solução da controvérsia, seja porque permite que outras questões sistêmicas, estruturais e interdisciplinares sejam abordadas, de modo a fornecer um lócus de tratamento amplo e mais profundo do conflito.
Assim, embora o Manual de Boas práticas da Convenção de Haia e a Resolução 449/2012 do CNJ prevejam a utilização da mediação, nada dispondo sobre a JR, as técnicas de JR podem ser amplamente empregadas nesses casos, com respaldo na Resolução 225/2016 do CNJ, nas resoluções sobre JR da ONU, e no próprio Manual de Boas Práticas de Haia, que deixa abertura para outros métodos consensuais, não prevendo uma abordagem metodológica de mediação específica.
Entende-se, por fim, que a justiça restaurativa, a conciliação e a mediação compõem o rol de soluções alternativas de conflitos, na metáfora do Tribunal Multiportas, podendo ser utilizadas em ações envolvendo subtração internacional de crianças. Não há um método melhor ou um que seja genericamente mais adequado, uma vez que tal endereçamento deve ser feito durante o processo de mapeamento do conflito: após avaliação da profundidade do drama, da predisposição interna das partes envolvidas, das questões estruturais e emocionais subjacentes, das necessidades que deverão ser abordadas e endereçadas para melhor tratamento do conflito. Assim, a JR deve ser escolha em potencial, mas é na análise do caso concreto pelos facilitadores, no processo de derivação, que a metodologia mais indicada ao conflito será escolhida.
De fato, a profundidade cognitiva da JR e sua abordagem sistêmica, interdisciplinar e intersetorial permitem, muitas vezes, uma compreensão mais profunda e uma intervenção mais ampla nas causas que deram origem ao conflito. Mas é na “trincheira” do mundo real que as escolhas são feitas. É na experiência encarnada. Assim, a complexidade do conflito, a particularidade de cada contexto e a predisposição das partes deverão guiar a escolha na derivação.
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