O Discurso De Proteção Dos Direitos Fundamentais Como Forma De Sua Violação
- Ariane Trevisan Fiori

- 1 de ago.
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Atualizado: 15 de set.
O DISCURSO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FORMA DE SUA VIOLAÇÃO.

RESUMO
Diante da complexidade das relações sociais na contemporaneidade, do avanço e proliferação de novos crimes, os Estados vêm tomado inúmeras medidas abusivas e arbitrarias no exercício de seu poder que tem violado os direitos fundamentais. Esta trabalho propõe uma reflexão sobre a necessidade de reconhecer os direitos fundamentais como premissa básica e necessária para a convivência humana. É preciso atentar para as práticas do poder público que visam através de um discurso de necessária restrição de direitos para o fim de proteção de todos, justificar ações abusivas e que na verdade violam e/ou reduzem direitos. Esta discussão é importante para evitar discursos radicais e garantir a proteção dos direitos humanos para todos e a efetiva democracia.
PALAVRAS CHAVES: DIREITOS FUNDAMENTAIS, ESTADO, DIREITOS HUMANOS, PODER, BIOPOLÍTICA, ESTADO DE EXCEÇÃO.
INTRODUÇÃO
Frente aos avanços sociais, a complexidade das relações, se faz necessário uma reflexão crítica sobre os direitos fundamentais. A sociedade contemporânea, característica do multiculturalismo, representa a impossibilidade de tratar tais direitos como um catálogo escrito e fechado. É o momento em que se observam as declarações mais autênticas, entretanto, também, é o cenário das mais brutais transgressões desses direitos.
O presente trabalho terá como foco de análise os direitos fundamentais no seu sentido genérico, ou seja, abrangendo os considerados de primeira, segunda e terceira geração. No entanto se considera os de primeira geração, aqueles que formam o núcleo mínimo existencial, o que será explicado no decorrer da pesquisa.
Os direitos fundamentais são a premissa básica de convivência humana, devendo ser reconhecidos materialmente e não apenas inscrito na Constituição dos Estados. Significa dizer que o Estado deve respeitá-los no exercício de sua soberania, sendo, nesse sentido, a preocupação deste trabalho, isto é, traçar alguns pontos para reflexão sobre algumas práticas disfarçadas de violação de tais direitos no exercício do poder estatal. É possível verificar o poder público utilizando-se de um discurso de proteção dos direitos do homem, como forma para práticas de abusos e arbitrariedades de poder. A punição de culpados a qualquer custo demonstra a falha do Estado de exercer as suas competências de forma eficiente, recorrendo, algumas vezes, a uma política de exceção para justificar a violação de direitos fundamentais.
Para discutir tal problema, o trabalho abordará, inicialmente, um dos momentos históricos-políticos essenciais na formação dos direitos do homem: o período iluminista. Após, se torna necessário apreender os aspectos conceituais em torno de tais direitos como forma de aproximação de uma teoria universal para garantir a sua efetivação. E, no terceiro ponto, destacar algumas questões consideradas como violadoras de direitos fundamentais. Acresce-se, por fim, que a pesquisa não tem por finalidade o esgotamento do problema, apenas fazer algumas reflexões como forma de contribuir para o aprofundamento do tema.
1) O MOMENTO HISTÓRICO-POLÍTICO DETERMINATE NA ESTRUTURAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O DISCURSO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FORMA DE SUA VIOLAÇÃO.
É no mundo moderno que se desloca o centro de observação do divino para o homem – o humanismo jurídico. O indivíduo passa a ser o responsável por construir e conduzir a política do Estado.
A erosão da teoria tradicional do direito político se deu, de maneira mais acentuada, com o iluminismo, as Revoluções Francesa e Americana foram um dos marcos principais dessa nova ordem política.
O homem passa a ser reconhecido, cada vez mais, como o centro da gravidade possível do poder estatal, o único capaz de tomar a iniciativa das leis e das regras de direito. Conforme Simone Goyard-Fabre, o iluminismo não só fazia do homem o condutor da vida política, como o criador das normas jurídicas[1]. Chegava o momento de acabar com a relação do crime com o pecado, do sobrenatural, do infame, agora só o homem e somente ele que determina o poder, ou seja, o poder é leigo – período da laicização do direito. A filosofia do direito orientou a reflexão sobre o poder para uma concepção constitucionalista que construiu o pórtico para o Estado moderno. A noção de direito natural, nessa época, está separada de Deus e a razão separada da experiência, o conhecer separado do ser[2].
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[1] GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 97-8.
[2] Idem, ibdem, p. 100-102.
Foi no período iluminista que se iniciou a preocupação com o progresso da condição humana e a promoção da liberdade dos cidadãos e, por esta razão, a necessidade de elencar direitos e mecanismos de garantia e efetivação desses. Segundo Vicente Barreto, a identidade dos direitos fundamentais, originada nas declarações revolucionárias do século XVIII, se baseia na proclamação da existência de valores da pessoa humana válidos em todo o planeta[1].
O pensamento moderno se caracteriza pelo humanismo, individualismo, igualitarismo e racionalismo. O direito político moderno, no pensamento de Simone Goyard-Fabre[2], edificou-se em três grandes princípios: o da ordem pública, da autoridade centralizadora do poder e do constitucionalismo.
Nos primórdios da modernidade, é possível encontrar, na obra de Maquiavel, a noção de ordem pública como expressão do poder do Estado. No Estado moderno, o poder se expressa na maneira que o Estado tem de adotar as normas, ou seja, o poder é determinado não na potência e no oportunismo, mas na forma da elaboração das leis que impõe aos cidadãos, impondo superioridade aos usos e costumes. O domínio do poder se exerce sobre a necessidade natural e sobre o acaso que regem a vida dos homens e, portanto, a arte de governar é inconcebível sem recorrer ao princípio da ordem pública, pois, do contrário, estar-se-ia diante de uma anarquia. Aproveitando-se dessas premissas, Thomas Hobbes edificou, através da filosofia sistemática, a estátua do poder. A idéia de autoridade centralizadora do poder significa que o Estado (moderno) tem o monopólio da criação das normas a tal ponto que quando não existe poder, não há Direito. Hobbes pensa a política no contexto humanista, individualista e igualitário. O poder é criado pelo homem e já que é ele que cria as normas, deve assegurar o seu funcionamento e sua utilização, devendo servir à segurança dos homens e à paz social. É neste momento que se inaugura a era do indivíduo. Hobbes parte da premissa que o indivíduo não tem outra preocupação além de sua própria vida; a partir desta concepção individualista, a existência do poder no Estado apresenta um único problema: a passagem de uma multidão de indivíduos associais e apolíticos para uma unidade ordenada social e política. Para resolver esse problema, Hobbes propõe uma teoria do contrato social que mais tarde foi aperfeiçoada por Rousseau. Ainda, neste momento, surge a concepção de que os homens na sua constituição natural são iguais, tem as mesmas aptidões, mesmas necessidades e formas para satisfazê-las e, assim, têm as mesmas preocupações, sendo a principal de preservar a sua vida. Por isso, quando deixam o ‘estado natural’ pelo ‘estado social’ a contribuição para a instituição do poder é a mesma para todos[3]. _________________________
[3] BARRETO, Vicente de Paulo. “Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito insolúvel?”. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovas, 2004, p. 279-307.
[4] GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., p. 59-114.
O princípio constitucionalista não foi inventado no período iluminista, é anterior. No entanto, é, neste período, que a palavra ‘constituição’ foi utilizada como metáfora de corpo político para designar a organização do Estado, correspondendo à lei fundamental deste, isto é, ao corpo de normas que estruturam o Estado e que são superiores as demais regras existentes. Assim, a idéia de constituição designa duas idéias mestras: de um lado, a constituição define o estatuto orgânico do Estado e do outro, determina o aparelho jurídico do poder segundo o esquema de hierarquia das normas[6].
É nesse contexto histórico-político-ideológico que se vislumbra a preocupação com a proteção dos direitos considerados fundamentais para a existência do homem, o que hoje é conhecido pelo mínimo existencial.
Embora a expressão ‘estado de direito’ já exista desde o século XVI, é a partir do período iluminista e mais claramente nas últimas décadas que seu conceito se torna compreendido por todos e utilizado de forma ampla. O ‘estado de direito’ é uma garantia para a liberdade dos indivíduos. Não é um regime político, mas uma modalidade constitucional para evitar o abuso e arbitrariedade do poder. O Estado se submete às suas próprias regras como forma de garantir a liberdade (direitos inicialmente de primeira geração) dos cidadãos.
O grande problema é que o ‘estado de direito’, para alguns autores como explica Simone Goyard-Fabre, foi colocado como oposição à ordem[7]. Ou seja, partindo do pressuposto que os dois pilares do constitucionalismo são a ordem jurídica (normas que organizam a estrutura do Estado para mantê-lo) e a liberdade (normas que protegem os direitos básicos dos indivíduos), para proteger esta, estar-se-ia minimizando aquela, o que não está correto. Exatamente por esse mal entendido, percebe-se cada vez mais um distanciamento do ‘estado do direito’ e do ‘estado de direito’, o que coloca o direito em crise, pois partindo deste raciocínio se viola direitos com a justificativa de preservação da ordem.
Desta forma, uma vez analisado, ainda que brevemente, um dos momentos fundamentais para a estruturação dos direitos fundamentais, auxilia a discussão de sua teorização, bem como a sua efetivação na sociedade democrática.
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[5] Idem, ibdem.
[6] Idem, ibdem.
[7] Idem, ibdem, p. 343-355.
2) ALGUNS ASPECTOS CONCEITUAIS PARA A DISCUSSÃO DE UMA TEORIA UNIVERSAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos humanos podem ser identificados por diversas expressões, dependendo da concepção jurídico-política adotada. Assim, podem ser denominados de direitos naturais, direitos inatos, direitos individuais, direitos fundamentais, direitos do homem, liberdades públicas, dentre outras.
No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução[8]. Atualmente, os direitos humanos representam a ‘pedra de toque’ da justiça do direito e da legitimação do poder, ou seja, fazem parte das exigências contemporâneas de justiça. Tais direitos não são ilimitados, podendo sofrer limitações em defesa da dignidade, liberdade ou a simples convivência social. Para que essas restrições não resultem de arbitrariedades, somente são admissíveis limitações decorrentes da lei.
Pela importância que representam, os direitos fundamentais requerem uma análise mais aprofundada, a elaboração de uma teoria que determine um núcleo mínimo para que possa ser exigido e garantido por todas as sociedades, independente de cultura, religião e sistema jurídico adotado. Alguns autores, como Vicente de Paulo Barreto, sustentam a importância de se trabalhar com a teorização dos direitos humanos, isto é, defende o autor a criação de um mínimo universal que deve ser respeitado por todas as sociedades, independente do pluralismo e multiculturalismo do mundo atual. É necessário o reconhecimento de algumas características comuns de todos os seres humanos para servir de fundamento para o estabelecimento de uma sociedade solidária[9] e assim, verdadeiramente democrática.
Os direitos humanos não podem ser considerados de forma abstrata e sim como manifestações inseridas na situação histórica de cada cultura. Por esta razão, impõe-se compreender a conceituação de tais direitos como meio para se pensar em sua teorização.
Eusébio Fernandez, como outros, propõe uma conceituação ligada à dignidade da pessoa humana, aqueles direitos essenciais para o desenvolvimento da dignidade. Daí o raciocínio de que somente seriam direitos aquelas necessidades humanas que exigem satisfação incondicional e, por isso, a possibilidade de impor aos outros deveres correlativos a esses direitos. Cada direito implicaria em um dever. A partir daí, sustenta o autor existirem três tipos de justificações para os direitos fundamentais: fundamentação jusnaturalista (direitos humanos como direitos naturais); fundamentação histórica (direitos humanos como direitos históricos, resultado do movimento da história); fundamentação ética (direitos humanos como direitos morais). Para o autor a terceira possui um aspecto comum em relação às outras duas e é, portanto, superadora e mais correta[10].
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[8] ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro, 1979.
[9] BARRETO, Vicente de Paulo. “Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito indisolúvel?” Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 279-307.
[10] FERNADEZ, Eusebio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991, p. 77-126.
A mais conhecida e com mais tradição histórica é a fundamentação jusnaturalista e também a que apresenta maiores problemas. Volta-se a discussão entre direito natural e direito positivo. Para tal concepção, os direitos fundamentais do homem derivam-se diretamente da crença do direito natural, que é antes e está acima do direito positivo (possui supremacia ao positivo). Parte do pressuposto de que o direito natural consiste em um ordenamento universal deduzido da própria natureza humana, derivando-se de direitos naturais como direitos que ostentam a pessoa como reflexo subjetivo de uma ordem normativa natural (a fundamentação desses direitos se encontra no direito natural). A fundamentação histórica dos direitos humanos manifesta-se na concepção de direitos variáveis e relativos a cada contexto histórico que o homem possui de acordo com o desenvolvimento da sociedade. As diferenças da fundamentação naturalística são claras: enquanto que a primeira sustenta a existência de direitos absolutos e universais, esta dá lugar a direitos relativos, variáveis pelo tempo e local; em segundo, não se fala aqui de direitos anteriores e superiores e sim de direitos que são adquiridos da origem social, resultado da evolução da sociedade. O conceito de direitos humanos tem-se decantado através da história, a partir do núcleo teórico mais amplo da humanidade, não se fundando na natureza humana e sim na necessidade humana e nas possibilidades de satisfazê-las dentro de uma sociedade. Sobre esses aspectos, o autor impõe duas críticas: 1) a primeira corresponde a variabilidade dos direitos humanos, entendendo que não se falar de direitos humanos com tanta variabilidade, até porque existem alguns que não seriam variáveis (direito pessoais como a vida e a integridade física); 2) a segunda consideração é que os direitos fundamentais recairiam nas necessidades humanas, sendo que o autor critica, perguntando quais seriam as necessidades humanas? Quais os critérios utilizados para elegerem as necessidades humanas? A fundamentação ética ou axiológica dos direitos humanos fundamentais parte da tese que estes direitos nunca tem origem jurídica (direito positivo) e sim possuem um conteúdo ético, valorativo em torno das exigências imprescindíveis para uma vida digna. O direito serve para dar efetividade, reconhecer tais direitos. Para o autor os direitos humanos são direitos morais, entendido estes como resultado da dupla vertente ética e jurídica. Somente os direitos morais estariam estritamente ligados a idéia de dignidade humana e assim, acabar-se-ia com a polêmica entre o jusnaturalismo e o positivismo[11].
A importância desta discussão conceitual está na efetividade de tais direitos, uma vez que se defende que a efetividade dos direitos fundamentais encontra-se dependente de sua fundamentação. É uma discussão que deve ser permanente na sociedade, já que não temos um catálogo fechados de direitos.
A idéia de um núcleo mínimo de direitos ligados à necessidade humana como cerne de fundamentação dos direitos humanos para todas as sociedades é antiga, pode-se observar em Kant[12] e Hart.
Hart, também, definiu o direito natural como aquele que possui um conteúdo mínimo ligado a sobrevivência humana. Este conteúdo mínimo estaria relacionado ou corresponde às seguintes verdades: vulnerabilidade humana – as exigências do direito e da moral consiste, na maioria das vezes, em abstenções e não serviços a serem prestados, ou seja, em proibições de condutas (a mais importante é restringir o uso da violência para matar ou ofensas corporais). Se os homens fossem imunes à violência, por exemplo, não haveria necessidade para tal preceito. A igualdade aproximada significa que os homens diferem na força física, agilidade, capacidade intelectual, etc. Todavia nenhum indivíduo é mais poderoso do que outros, pois possuis as mesmas necessidades físicas, biológicas; assim, torna necessário um sistema de abstenções mútuas e de compromissos quer de obrigações jurídicas ou morais. Aqui, também, as coisas poderiam ser de outro modo. Se houvesse algum indivíduo com uma capacidade muito diferente, mais superior que os demais (capacidade para viver sem descanso, por exemplo), teriam muito a ganhar com a agressão não precisando das abstenções, estas seriam desnecessárias. A desigualdade perde a razão da existência das normas jurídicas e morais, um exemplo disso são as guerras. O altruísmo limitado também auxilia na compreensão, pois os homens não são demônios nem anjos, estão nomeio do caminho entre estes dois extremos, tornando preciso um sistema de abstenções. Também os recursos limitados, isto é, o homem precisa de comida, roupa, abrigo, etc, bens que não estão à disposição com abundância ilimitada; dessa forma, o homem precisa viver em sociedade. A compreensão e força de vontade limitadas é o que permite à vida social. A maior parte dos homens é capaz de sacrificar interesses imediatos a curto prazo a conformidade de tais regras, em prol de interesses maiores. Na verdade, a obediência pode ocorrer por vários motivos: uns a partir de que os sacrifícios levam a ganhos maiores, outros a partir de uma preocupação com bem-estar dos outros ou porque encaram as regras como merecedoras de respeito em si próprias e encontram seus ideais na devoção a elas. No entanto, essa obediência, independente do motivo, não é partilhada por todos os homens. E na ausência de uma organização para a sua descoberta e punição, muitos sucumbiriam à tentação. Por isso a coerção, as sanções devem estar presentes, não como motivo da obediência, mas para garantir que aqueles que voluntariamente obedeceriam não serão sacrificados aos que não obedeceriam. Para aqueles casos específicos de superioridade, que o autor chama de força dos malfeitores, não importa a sanção, pois tais desigualdades fazem com que o uso das sanções não representasse perigo, fazendo que grupos guerreassem afetando questões vitais da sociedade[13].
A idéia dos direitos humanos como uma teoria universal de fundamentação de um conteúdo mínimo é de fundamental importância diante do pluralismo social, é uma forma de garantir a sua proteção e efetivação. A violação de tais direitos, independeria, assim, das características culturais de cada sociedade e repercutiria em diferentes Estados. As necessidades humanas são comuns a todos os povos, não é o Direito que determina e sim a natureza, a forma como irão se realizar é que será definida pelo Direito.
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[11] Idem, ibdem. [12] Idem, ibdem.KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 194.
[13] HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2005, p. 201-228.
3) O DISCURSO DE PROTEÇÃO COMO FORMA DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O aparecimento, ainda no século XVIII, da população como um problema econômico e político, como fonte de riqueza das nações modernas demarca o nascimento da biopolítica. O desenvolvimento do capitalismo esteve diretamente associado a uma estratégia de gerenciamento do capital humano com fins econômicos. A produtividade econômica depende diretamente da qualidade da população. Foi por isso que a vida se tornou o principal alvo das investidas do poder.
“O ajustamento da acumulação de homens à do capital, a articulação
do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte,
tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e
procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua
valorização e a estão distributiva de suas forças foram indispensáveis
A biolpolítica determina a entrada da vida nos cálculos do poder e a produção de um dispositivo de poder-saber que regulamentará o controle e as transformações da vida humana. Nesse sentido Foucault se refere: “o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”[15].
O lema do biopoder, diferentemente do “fazer morrer e deixar viver” estabelecido pela soberania, enuncia o “fazer viver e deixar morrer”. O biopoder chega para exercer um direito sobre a vida, com o imperativo de preservá-la e resguardá-la em nome da população.
Foucault ensina:
“Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se
no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível
que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua
fatalidade: cai em parte, no campo de controle do saber e de
intervenção do poder. Este não estará mais somente a voltas com
sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte,
porém com seres vivos, e o império que poderá exercer sobre eles
deverá situar-se no nível da própria vida; é o fato do poder
encarregar-se da vida, mais do que da ameaça de morte, que lhe
dá acesso ao corpo. Se pudéssemos chamar ‘bio-história’ as
pressões por meio das quais os movimentos da vida e os
processos da história interferem entre si, deveríamos falar em
biopolítica para designar o que faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do
saber-poder um agente de transformação da vida humana”[16].
Sobre o assunto, é importante também analisar Girogio Agamben – filósofo italiano e pensador de destaque no pensamento filosófico-político da atualidade – realiza uma análise crítica das categorias políticas que governam as sociedades ocidentais. No cerne de suas investigações, ele retoma de Focault o tema da biopolítica, embora parta de uma concepção diferente de poder[17]. Agamben traz um pensamento crítico sobre a forma de atuação do poder na contemporaneidade.
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[14] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, p. 133
[15] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I:a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 134.
[16] Idem, ibdem.
[17] Agamben parte de uma concepção clássica de poder, em que este tem seu fundamento, sua origem no soberano, poder = soberania. Já Focault trata o poder pelas malhas do social, preferindo analisa-lo pela perspectiva de uma microfísica do poder.
Partindo do referencial teórico de Foucault sobre o biopoder, em que ele apresenta o paradoxo entre vida e morte, isto é, por um lado o Estado concentra-se no ‘fazer viver’ e por outro exerce a função da morte, Giorgio Agamben[18], seguindo no caminho aberto por Focault, observa que o ‘deixar morrer’ provavelmente, nos dias de hoje, se sobreponha ao imperativo do ‘fazer viver’.
Como base no discurso de Agamben, pode-se afirmar que a grande mudança nas relações de poder do Estado está na simbiose entre a política e a vida biológica, isto é, na modernidade, a política passa a se importar com a ‘vida nua’[19]. O direito à vida, ao corpo, o sexo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades tornam-se fato político.
O Estado atua no exercício do poder para assegurar o cuidado, o controle e o usufruto da vida, e para garantir tais aspirações, em nome destas, passa a ter autorização de matar. Os regimes totalitários do século XX, para ambos autores, marcaram um momento histórico em que a biopolítica atingiu o ápice de seu desenvolvimento, repercutindo no campo social e subjetivo. Para Agamben, especificamente, os laboratórios eugênicos produzidos pelo nazismo são a máxima da radicalidade que as estratégicas biopolíticas atingiram e continuam até hoje atingindo.
Em sua análise, o autor demonstra que a configuração do estado de exceção presente na doutrina alemã se faz presente nas doutrinas italiana, francesa e anglo-saxônica, respectivamente como decretos de urgência, estado de sítio e lei marcial, o que atesta a sua presença nas origens da constituição dos Estados democráticos. Dessa forma, Agamben denuncia o paradigma do estado de exceção inserido no cerne da democracia, e vai mais além localizando neste ponto o germe do totalitarismo como imanente à própria constituição dos Estados democráticos modernos.
Nesse sentido, o estado de exceção não só é uma medida contingente de que o Estado lança mão em momentos excepcionais de crise, mas também faz parte do fundamento próprio da idéia de soberania e constitui, portanto, a matriz política das democracias que se expressa de forma radical no contexto contemporâneo.
É nesse contexto que se verifica um discurso estatal de proteção dos direitos humanos e ao mesmo tempo políticas que transgridem tais direitos, isto é, o discurso legitima a atuação desmedida do Estado. Para proteger direitos é justificável violação de outros direitos, como se os fins justificassem os meios.
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[18] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
[19] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer ..., op. cit., p. 126-194.
A preocupação com os direitos do homem, como já afirmado, está em primeiro plano na estrutura do Estado, na verdade é o fundamento de sua legitimidade e soberania. O problema está em torno do exercício do poder por parte de alguns Estados que adotam disfarçadamente políticas totalitárias como se estivessem em um verdadeiro estado de exceção. O poder executivo passa a legislar, atuando em nome da proteção da sociedade e de seus indivíduos e, paradoxalmente, violando direitos destes indivíduos, pois cria um discurso legitimador de necessidade de proteção dos direitos fundamentais.
Por isso a necessidade de uma maior reflexão crítica sobre o exercício do poder de forma desmesurada, isto é, de políticas totalitárias disfarçadas. Do contrário, pode-se chegar a um extremo: a formação de um conceito de ‘vida sem valor’ ou indigna de ser vivida. Tal conceito é aplicado aos indivíduos que devem ser considerados incuravelmente perdidos e, assim, se justificam a perda da garantia dos direitos fundamentais, como crueldades para obter confissões, prisões ilegais dentre outras.
O que se pretende não é a defesa de um discurso radical contra as políticas do exercício do poder, mas lançar uma questão para discussão e reflexão acadêmica diante da complexização das relações sociais[20]. Assim, é possível afirmar que com a globalização e a necessidade da tolerância em razão do multiculturalismo faz-se necessária a criação de um parâmetro mínimo para garantir a efetivação dos direitos fundamentais.
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[20] Este ensaio não pretende esgotar a pesquisa e a reflexão sobre o tema, mas traçar inquietações sobre esta questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a sociedade atual, globalizada e multicultural, é necessário à discussão de uma teorização, ainda que mínima, dos direitos fundamentais. Não no sentido de descrevê-los como questões abstratas e fechadas, mas uma teoria mínima como forma de garantir a sua efetivação.
E, neste sentido, é importante a compreensão da ruptura na ideologia moderna com a laicização do saber, ou seja, no mundo moderno tem-se o deslocamento do centro de observação do divino para o homem. É o homem que passa a ser a estrutura do Estado, as normas são feitas por ele e para ele. A partir do período iluminista, observa-se a preocupação com os direitos do homem e o início de sua consagração como princípio a ser respeitado.
Entretanto, defende-se que para garantir que os direitos humanos não se tornem manifestações abstratas e inefetivas, faz-se necessário a construção de uma fundamentação racional, identificando um mínimo existencial que deve ser respeitado independente da cultura e política a ser seguida.
Aceitar a definição de um conteúdo mínimo ligado à necessidade humana garante um meio de controle e limites por parte dos Estados no exercício do poder, evitando assim violações mascaradas pelo discurso da proteção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
___________. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro, 1979.
___________. A condição humana. 10 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BARRETO, Vicente de Paulo. “Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito insolúvel?”. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovas, 2004.
FERNADEZ, Eusebio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Traduação de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
________. História da sexualidade I:a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2005.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 194





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